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artes Entrevista 2002 .... 21
artes

Aldemir 2002

artes
Foto: Rita Feital
Aldemir e Carlos von Schmidt antes da entrevista



A entrevista abaixo foi realizada dia 20 de dezembro de 2001. Era minha intenção fazela no ateliê da rua Paracuê, nas Perdizes, mas a grande quantidade de amigos que passam por lá antes do Natal prejudicaria nossa conversa. Aldemir sugeriu a nova André galeria onde estou curando exposição de suas pinturas para abril de 2002. Achei ótimo. Marcamos para as l6 horas. No 2º andar, inteiramente ocupado por tapetes persas, esparramei 84 telas. Fazem parte de um lote de l44. Fotógrafos a postos fiquei na moita para ver a cara do Aldemir. Chegou e se deslumbrou. Flashs explodiram. Nos abaixamos para ver algumas pinturas e logo mais estávamos sentados no chão. Aldemir, com um pé descalço, o dedão do pé direito inchado. Gota. Eu puxando a perna esquerda, com o tornozelo inchado. Gota. Sem darmos a mínima para o mal que afligia o Pafúncio da Marocas, nos ajeitamos nas cadeiras e começamos a conversar. CvS

Carlos von Schmidt: Se você não pintasse paisagens, flores, frutas, gatos, peixes, pássaros, mulheres, o que pintaria?

Aldemir Martins:
Jogador de futebol, tocador de violão. Tenho uma frustração enorme de não saber tocar violão. Mas, tenho um neto que toca baixo. É o único da família chegado à música. Já melhorou muito.

CvS:Além dos Tocadores de Ganzá pintada em l946, só vi cangaceiros tocando violão. Há outros?

Aldemir:
Não. Só os cangaceiros líricos. Líricos e apaixonados.

CvS:Em entrevista que fizemos em 1982, três dias depois do vernissage da exposição na galeria Alberto Bonfiglioli...

Aldemir:
Nossa Senhora!!!

CvS:... entrevista que publiquei na revista artes:, perguntei-lhe qual era a história do caju enforcado. O falecido Antonio Calado, em artigo sobre você, cita a entrevista e a minha pergunta e diz que você desconversou. 19 anos depois lhe faço a mesma pergunta: qual é a história do caju enforcado?

Aldemir:
Todo caju vendido nas ruas do nordeste é preso por uma cordinha de palha, por uma paleta no pescoço. Os vendedores amarram pencas de caju em um pau e os cajus ficam pendurados, enforcados.

CvS:Então é isso?

Aldemir:
É.

CvS:Em 82 você estava com 60 anos. Agora está com 79. Como foi que a vida lhe tratou nesses 19 anos?

Aldemir:
As pessoas me olham enviesado quando falo que Deus é muito meu amigo e que Ele gosta muito de mim. Veja. Eu trabalho no que gosto, a hora que eu quero, aonde eu quero, pra quem eu quero. Quando não gosto de uma pessoa nem mostro meu trabalho para ela. Assim, sou muito feliz.

CvS:Você é um contador de “causos e histórias” emérito. A memória do elefante é fichinha perto da sua.

Aldemir:
O elefante é muito grande.

CvS:Como é aquela história do sujeito que comeu a mulher do outro e depois ele e o corno foram comer uma jaca juntos?

Aldemir:
Isso é história do Jorge Amado, do Cabo Martins. O cabo Martins adorava a mulher dos outros e adorava jaca. (risadas) Primeiro come a mulher do outro. Quando o outro soube quis acertar o cabo. Daí o Martins, muito matreiro, quando viu a coisa preta falou: “nós não vamos brigar nem ficar brigados não. Vamos comer a jaca que é muito melhor do que isso tudo.” (risadas) É uma história meio pornográfica mas é linda. Melhor do que buceta, só jaca. (risadas) N. do A.: Coincidência ou não Aldemir adora jaca, foi cabo do Exército e se chama Martins.

CvS:Há dias estou mergulhado em suas pinturas das décadas de 80, 90 e dos anos 2000 e 2001. Uma beleza! Um dilúvio de cores. Você sonha colorido?

Aldemir:
Não.

CvS:Você pensa colorido?

Aldemir:
Penso colorido. Penso.

CvS:E em preto e branco?

Aldemir:
Penso. Estou fazendo um livrinho, que você viu na minha mesa, de 15 gravurinhas, litografias. Só em preto e branco.

CvS:Gravurinhas de que tamanho?

Aldemir:
20 x 20 cm.

CvS:Qual é o percurso de uma pintura. Da idéia à assinatura?

Aldemir:
É muito simples. Às vezes estou assobiando e a idéia me surge. Aí eu olho para o chão e a idéia está desenhada, pintada, refletida. É assim.

CvS:Sei.

Aldemir:
(rindo) É fácil fazer. Fazer pintura é muito fácil. Só é difícil para quem não sabe.

CvS:O Picasso dizia que só desenhava, pintava, o que sabia. O filho pedia para ele pintar um elefante e ele dizia que só sabia desenhar touro.

Aldemir:
(rindo) É isso. Touro também não sei. Sei desenhar bode. O Portinari dizia: pinte uma banana e se você a pegar no escuro e souber que é uma banana, está pintada.

CvS:Você já foi derrotado por uma pintura?

Aldemir:
Sim.

CvS:E por um desenho?

Aldemir:
O desenho derrota mais... O desenho me humilha.

CvS:Quantas telas você pinta por mês?

Aldemir:
Às vezes 30, às vezes 25, às vezes 3.

CvS:De 30 a 3.

Aldemir:
É (rindo), 33. O número dos tuberculosos. 33. Aquela história do médico dizendo tussa, diga 33, tussa, diga 33. (Aldemir ri, eu rio, todos riem. É uma risada só.)

CvS:Há pintores que pintam várias telas ao mesmo tempo. Pintam em série...

Aldemir:
Não sei fazer isso não. No Ceará, no meu tempo de menino, tinha um pintor que pintava muito para os americanos. Ele comprava uma peça de algodão e pintava o céu na parte de cima, o mar na parte de baixo. Ia andando e pintando as jangadas. Pintava direto 30 metros de pintura. Depois cortava.

CvS:A pergunta pode parecer boba, frívola, idiota, mas se você tivesse que escolher três cores, quais escolheria?

Aldemir:
A cor do Leger, do Miró. Vermelho, preto e branco.

CvS:E o mercado de arte?

Aldemir:
Tá muito melhor do que em l946, 48. Num tá?

CvS:Tá!

Aldemir:
Os vendedores de arte naquela época viviam escondidos. Hoje eles têm orgulho de dizer que são vendedores de arte, galeristas, marchands.

CvS:E a atual crítica de arte?

Aldemir:
Está difícil. Para escrever sobre arte, fazer crítica, precisa saber. E sabem pouco.

CvS:Cada vez menos.

Aldemir:
Falam muito, sabem pouco.

CvS:É raro encontrar crítico de arte em exposição. Essa desinformação é responsável pela crítica pífia que anda por aí. Você costumava fazer anotações em pequenos pedaços de papel. Você anotava tudo para futuros trabalhos. Você continua a fazer isso?

Aldemir:
Continuo. Tenho uma caixa de charutos que você conhece, cheia de papéis anotados. O dia que conseguir fazer a metade do que está ali, serei um homem rico.

CvS:Todas as idéias estão ali, nos papéis?

Aldemir:
Está tudo no papel. Tudo na papelada. Tudo feito, pronto para ser executado.

CvS:Como você se relaciona com instituições como a Bienal?

Aldemir:
Olha. Se você não compra o bilhete você não ganha na loteria.

CvS:É...

Aldemir:
Se você jogar, quem sabe você pode ganhar.

CvS:Cercado por suas frutas, fiquei pensando qual seria a sua fruta predileta?

Aldemir:
Manga. Jaca. Jaca tem aquele negócio bem feminino. Aquela bunda grande, gostosa. Cada bago tem um cheiro gostoso... É ou não é??? (risada geral. Transforma-se em gargalhada.)

CvS:E aquela história de jaca mole, jaca dura?

Aldemir:
Mulher gosta de jaca dura. Homem gosta de jaca mole. Essa é uma teoria de vendedor de jaca na feira. De comprador. Na feira é assim.

CvS:Nós estamos no fim do ano, o Natal vem aí. O que você pediria para Papai Noel?

Aldemir:
Primeiro eu acho que é impossível eu conseguir chegar aos 90 anos como o Picasso.

CvS:Nunca se sabe...

Aldemir:
Morrer com 91 anos é uma felicidade apesar de não poder comer isso, não poder comer aquilo, não poder fazer aquilo outro.

CvS:O que você está achando da arte brasileira contemporânea?

Aldemir:
Olha. Tá muito boa. Não poderia estar melhor. O que acontece é o seguinte: deram liberdade para o povo fazer arte. Pro povo. Você vai a qualquer lugar do Brasil e tem gente fazendo arte. Tem um centro cultural. Um centro artístico. As pessoas no Brasil ainda estão deslumbradas com o poder do artista. Todo mundo inveja. Você conversa com um industrial, com um empresário e ele logo diz que gostaria de ser pintor. Costumo dizer que é fácil ser. Que é facílimo pintar. Esquece que você tem 30, 40, 50 anos nas suas costas fazendo arte, com alegria, com a alegria de fazer arte. Só de fazer.

CvS:Como você se sente hoje, dia 20 de dezembro de 2001, sabendo que em abril nós teremos na nova André galeria, exposição que reunirá cerca de 70 obras selecionadas do acervo da galeria, de um total de 144?

Aldemir:
Me sinto morto de vergonha. (risadas)

CvS:Qual foi a sensação ao rever essas telas reunidas?

Aldemir:
Hoje eu almocei com uma pessoa que o filho tinha vindo de Boston. Eu disse pro rapaz: Aproveite seu pai porque você vai morrer de saudade dele. O que sinto é isso. A saudade de ter executado, ter feito um gato, acabado o gato. (Aldemir emociona-se. O repórter também. Engole em seco e continua.)

CvS:E as paisagens?

Aldemir:
As paisagens? Eu mergulho nelas. São praias do Ceará. Em frente da minha casa.

CvS:Mulheres você pintou poucas.

Aldemir:
Mulher é muito difícil né... (risada geral) Mulher tem problemas: tô com a pele ruim, tô de mau humor, briguei, dormi mal...

CvS:estou com TPM...

Aldemir:
Eu nem falo nessa coisa. Não sou capaz de pensar nisso...

CvS:Aldemir, ao fazer a seleção de suas pinturas separei-as por temas. São 9. Paisagens, flores, frutas e flores, frutas, pássaros, peixes, gatos, mulheres e futebol.

Aldemir:
Está faltando um tema para completar os 10 pecados capitais. A inveja. Coisa que não tenho.

CvS:Geralmente quem é grande de verdade não tem.

Aldemir:
Carlos, vou te dizer uma coisa. Eu não tenho inveja de ninguém. Por bonito que seja, por elegante que seja, por forte que seja. Sou moleque do Ceará, franzino, fraco, mulato, mameluco, não chego a ser mulato, mameluco. Tive tudo na vida. Tudo na vida. Tudo. Tenho mulher, tenho filhos, neto. Um neto maravilhoso de l5 anos. Está apreendendo japonês. É brincadeira? Cvs: Maravilha, Acho ótimo.

Aldemir: Eu também acho. E toca baixo. Eu só toco pandeiro. Toquei pandeiro muito tempo. Meu pandeiro tocava devagar.

CvS:Fazendo um retrospecto de 2001 a l946, quando você chegou a São Paulo, quais foram os pontos altos, marcantes?

Aldemir:
Iamamu, ontem no Jô Soares, quando o Jô perguntou coisa parecida respondeu: “eu não me lembro”. A resposta mais bonita é essa. Eu não me lembro. Lembro que São Paulo em 1946 era uma cidade caipira.

CvS:Provinciana.

Aldemir:
Isso. Provinciana. Em l946 São Paulo era caipiríssima. Paulista era conhecido pelo sotaque. Você ficava sentado na porta da casa e sabia quem vinha pela rua. Lá vinha o “seu” Sebastião. Tudo bem “seu” Sebastião. Conversavam um pouco e o “seu” Sebastião ia embora. Hoje o cara vem chegando e você não sabe quem é. Pode ser da polícia. Quando cheguei a cidade tinha 2 milhões e 800 mil habitantes. Hoje, 16 milhões. Fico apavorado. Tem região da cidade que não conheço mais. Diadema era um sítio. Na Vila Maria os portugueses ricos tinham vilas. Tudo mudou.



CvS:Mudou tanto que vamos ter de terminar nosso papo, pois o João, seu motorista está informando que a hora do rodízio está chegando. Obrigado, Aldemir, muito obrigado.

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