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artes Entrevista Anos 80 .... 7
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Botina Engraxada

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O cangaceiro gordo, nanquim e tinta gráfica, 175 x 130 cm, 1961



uma pessoa que sabe pintar, que tem a cabeça no lugar, dentro do condicionamento da coisa brasileira, que deixou de morar na Europa, com todas as virtudes e os benesses que o status de morar em Paris, em Londres, em Roma, poderia me dar, prá vir morar no Brasil. Queria que os jovens tivessem o exemplo de como se pode viver artisticamente no Brasil. Eu chamo de “artisticamente” o fato de estar trabalhando com coisas de arte, pois eu me nego a fazer coisa alguma que não seja aquilo que necessite fazer dentro do meu ramo artístico. Comecei fazendo litografia, xilogravura para um jornal, para ser impresso na própria telha, na própria coisa amarrada do jornal. Naquele tempo tinha telha de estanho, de chumbo, aquela coisa toda. Como o jornal não podia pagar o clichê e nós queríamos fazer um suplemento literário com clichê, nós fazíamos o clichê na própria madeira e imprimíamos direto no suplemento. Então, eu tenho um artesanato e uma habilidade manual muito grande e isso talvez incomode a mim como artista, porque eu sei que sou capaz de executar e começo a me policiar para fazer isso muito bem feito.

artes:: Eu acho que não incomoda só a você. Incomoda a muita gente. Aliás há uma crítica constante contra você, de que você realmente faz programações visuais comerciais, uma arte comercial, que você trabalha com indústrias, aliás, o que eu acho é uma grande vantagem. Como você reage a esse tipo de crítica?

Aldemir:
Me perguntaram – eu sempre faço palestra prá estudante, vou às universidades, ginásios, fazer palestra prá eles – então um deles me perguntou o que era um artista comercial. Aí eu respondi, exatamente dizendo, que eu não conhecia um artista anticomercial. Porque tudo o que você produz, você tem que ter uma retribuição em espécie, ou uma permuta daquilo que você faz. A gratuidade do gesto não existe. A forma como você se comporta na rua, você está compondo a sua imagem. A imagem elegante, do relaxado, do nonchalant do homem simpático, charmoso, do antipático, sério, brincalhão...

Então veja, os meninos estavam preocupados com isso. Existe aqui um pintor, o qual eu respeito muito e quero muito bem e que a crítica diz que é o maior pintor brasileiro e o mais sério. Eu digo, sério pros outros, porque não acredito que ele só saiba pintar bandeirinhas. Agora, por que é que ele pinta bandeirinha? Porque o cliente quer a bandeirinha! Por que eu pinto o meu cangaceiro? Porque eu sei pintar meu cangaceiro. Claro que vou vender meu cangaceiro! Eu vou vender o meu cangaceiro! Mesmo porque, a minha filha come, a minha mulher come, meu cachorro come, minha cachorra come, eu tenho que pagar o meu automóvel, tenho que pagar o meu rádio, minha televisão, minhas viagens. Tenho que pagar todos os meus livros que eu compro e que pouca gente tem...

As tintas, as telas... A moldura mais barata desta exposição custou 60 mil cruzeiros. Eu, prá sentar aqui nesta prancheta que você está vendo, pago ao governo 50 mil cruzeiros por mês. Senão, eu não posso sentar. É o imposto que eu pago pro imposto de renda prá começar a trabalhar.

artes:: Qual foi a reação do ponto de vista comercial à sua pintura de hoje? Você está com uma cotação de mercado excelente. Como reagem ao preço de 3 milhões e meio?

Aldemir:
Eles reagem de duas maneiras. É muito engraçado. Primeiro, é que eles acreditam que eu vou morrer a semana que vem. (risadas) Então eu sou a geração do meio, né?! Eu sou o intermediário entre o Gregório e o Tozzi, entre o Volpi e o Clóvis Graciano. Então eles dizem: eu não posso apostar no Gregório porque ele é muito jovem, vai viver pelo menos uns dez anos. Então, o Aldemir que já está com 60, vai durar mais uns 5 ou 6 anos. Nós podemos apostar nele. Vamos comprar coisas do Aldemir. O que é muito bom, claro. Então o custo do preço do Brasil desapareceu, por uma razão muito simples. Há 5 anos atrás, você com 30 mil cruzeiros comprava dois Volkswagen.

Hoje com 3 milhões eu posso comprar um e meio! Então o quadro não acompanhou nem a desvalorização nem o crescimento do mercado. Então, as pessoas acham caro a princípio, mas depois raciocinam e veêm que não é caro. Porque tem a tinta, a moldura, o chassis. Não tá um bom preço, mas tá um bom preço porque tem a receptividade do retorno na mesma hora, que é isso que as pessoas esquecem!

artes:: E tem a sua grife.

Aldemir:
Exatamente! Não querem comprar só o quadro, também querem o nome do artista. O quadro é bonito, o quadro é bom, o quadro te satisfaz mas, se ele estiver assinado por Sebastião Pereira, eles não querem comprar!

artes:: Essa griffe tem 40 anos de tradição e significa inclusive um prêmio em Veneza...

Aldemir:
O prêmio Internacional de Veneza machucou muita gente. Porque foi um prêmio, eu digo a você, um prêmio de contrapeso. Quem ía ganhar o prêmio em Veneza era o Di Cavalcanti. Então nós fomos: eu, Renina e Caribé, e o Lívio Abramo, rechear a empada do Di. Ele ia com 44 obras e nós com 10.

Precisava fechar a sala brasileira em Veneza. Mas na hora da premiação, a unanimidade foi o prêmio de desenho para mim. Então, para não ficar um negócio muito complicado, o Di sabia disso, o Di já morreu, não pôde se defender, mas ele sabia disso, eles deram um Prêmio do Vaticano para ele, aqueles prêmios paralelos da Bienal de Veneza... então deram o Prêmio do Vaticano para ele. Eu acredito que só dois artistas brasileiro tenham o Prêmio Institucional de Veneza, acho que sou eu e a Fayga Ostrower. Porque os outros ganharam prêmios assim, o prêmio Fiat, o prêmio isso, o prêmio aquilo... o prêmio aquilo outro. O prêmio do Conselho, os famosos prêmios institucionais, só quem tem somos nós dois. Era a primeira vez que eu, sul-americano, ganhava o prêmio. Era a primeira vez que um homem de menos de 40 anos ganhava o prêmio de Veneza. Essas foram duas outras vantagens.

artes:: Foi nos anos 50?

Aldemir:
Foi em 56. Então tudo isso prejudicou a minha imagem. Eu moleque, arrivista...

artes:: Barulhento...

Aldemir:
Escandaloso, com o prêmio maior de Veneza... Incomoda, né Carlos, incomoda mesmo! Era a botina rangedeira entrando na sala, né... Sabiam que estava chegando, entrando...

artes:: Não só rangedeira, mas brilhante, engraxada! (risadas)

Aldemir:
Uma botina bonita, engraxada em Veneza. Ninguém podia dizer nada. Podia dizer: olha essa botina suja aí fazendo barulho! Não podia fazer isso comigo! E eu não tive essa coisa assim de pose, eu não sou o poseur do artista, do grande artista, do artista importante. Eu rio, eu brinco, eu falo de futebol, eu falo de jogo do bicho, eu gosto de falar de mulher, eu gosto de rir. Eu gosto de brincadeira, eu me divirto com as pessoas.

artes:: Chega no Chile, em Santiago, e pede vinho italiano!

Aldemir:
(risadas) Exatamente. Isso é muito bom. E você viu a cara do Ianelli que não queria pagar o vinho comigo! (risadas) Tudo isso é bom, muito bom, e você viu! Apesar de estarmos separados, eu estava de um lado e você do outro, mas você viu que a coisa é assim.

O meu desenho hoje, é o que eu digo sempre, entre os seis melhores desenhistas do mundo e eu estou incluído. Isso incomoda. Eu digo sempre. Pintor, eu não sou esse pintor que todo mundo diz. Eu não sou renovador da arte brasileira, eu não sou o indicador de caminhos da arte brasileira. Eu sou o profissional da arte, que dá condição para que os outros artistas mais capazes do que eu trabalhem. Eu quero que você entenda “mais capazes” como você, um cara que escreve melhor do que você, mais brilhantes no sentido de escrever, não menos conhecido, não menos conhecedor do assunto. Você não escreve sobre Sociologia, você pode dar o tema ao sociólogo e ele desenvolver melhor do que você. Então eu não sou um desenhista industrial mas sou capaz de dar o tema e a pessoa desenvolver esse negócio na indústria brasileira da melhor maneira possível. Isso eu não me nego a fazer, porque eu sou desbravador!

artes:: Como foi a sua experiência com a indústria brasileira?

Aldemir:
A melhor possível. Até hoje as pessoas vêm atrás de mim me cobrando uma louça da Goyana, um prato, um lençol. Agora mesmo eu estou fazendo um negócio que você vai morrer de rir! Artista nenhum teria coragem de fazer. Eu estou desenhando latas de sorvete para a Kibon!

artes:: Eu acho excelente! Não só excelente, como demonstra que você é um homem contemporâneo, integrado no processo...

Aldemir:
Então você vê. Eu vou ter agora um conhecimento que os outros não vão ter! Todas as donas de casa, as cozinheiras, o sorvete Kibon, as crianças, a copeira, vão saber que aquela lata é pintada por Aldemir Martins. Vão usá-las com farinha, fubá, com dinheiro trocado, que fica em cima da prateleira da cozinha...

artes:: Qual é o tema ou temas para o visual dessas latas?

Aldemir:
Aldemir Martins. Tudo. Tem pássaro, tem galo, tem gato, tem caju.

artes:: Tem a venerável jaca?

Aldemir:
Tem a venerável jaca, tudo, porque são as coisas que eu faço. Vou te contar outra história. Tem uma grande firma de azulejos que fêz um concurso enorme há uns oito ( continuação na página 8 )

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