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Aldemir Martins: A virada

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Foto: Francisco Albuquerque - Arquivo Aldemir Martins
Aldemir Martins, 1946

Hoje, somente os ignorantes e os de má fé podem ignorar a importância de Aldemir Martins na Arte Contemporânea do Brasil. Autêntico, espontâneo, aberto, franco, Aldemir Martins foi dos poucos artistas deste país que compreendeu o significado das mudanças sócio-econômicas ocorridas a partir dos anos 50. Sensível a essas modificações que alteraram substancialmente o comportamento não só do homem urbano, mas do campo também, integrou-se de corpo e alma no processo evolutivo de uma sociedade, que de agrária passava e ainda passa a industrial. Nesses quarenta anos, desenhou, gravou, pintou, ilustrou, fez cerâmica, participando de projetos industriais, contribuindo com seus desenhos, suas ilustrações, para a valorização de temas essencialmente brasileiros. Prata da casa, sofreu e ainda sofre críticas que revelam nítido colonialismo cultural. Há quarenta anos cultuando o Brasil, o Ceará, o nordeste, Aldemir revelou-se como desenhista. Sui generis, típico, fora do comum.

Seu estilo em pouco tempo tornou-se inconfundível. Alguns poucos infelizes e desavisados procuram imitá-lo. Desistiram logo. Primeiro porque não era tão fácil como a primeira vista parecia. Segundo porque as cópias, diluídas, anêmicas, não resistiam à menor análise. Eram cópias e disso não passavam. Os desenhos de Aldemir dos anos 50, caminharam do preto e branco para a cor. As pinturas, quando chegaram por volta dos anos 70, encontraram barreiras, fruto da visão viciada à linha precisa do desenho. Olhava- se a pintura de Aldemir com olhos habituados a seu traço no papel. Exigia-se dessa pintura, o comportamento do desenho. Sob essa ótica errada, distorcida, a pintura de Aldemir Martins foi durante anos ignorada, boicotada. Chegou-se até a confundi-la com ilustração! Mas, em essência, eram e são pinturas, nada mais.

Hoje, Aldemir Martins pinta com uma paleta mais clara, em pinceladas mais soltas. Em algumas áreas de cor o artista se revela um fauve sertanejo. Especialmente nas paisagens em que céus e montes abstralizam-se, em feéreis de tons e luzes. Nesses momentos de plástica, surge Aldemir Martins: A virada um novo Aldemir. Um Aldemir que recusa os limites impostos por uma obra realizada a partir de conquistas contínuas. Poderia, se quisesse, manter estes limites sem que sua obra sofresse a menor alteração. Mas não quer.

Como um jovem rebelde, diz não à possível acomodação. Insurgindo-se contra a facilidade dos macetes, reformulou conceitualmente sua maneira de ver e de pintar. Essa reformulação é responsável pela vitalidade que sua obra atual apresenta. Há, na pintura que Aldemir Martins apresentou na galeria Bonfiglioli, vários pontos de interesse. Em obras como A Venerável Jaca, Melancia e Caju Enforcado, o artista restringe-se a uma síntese formal, reduzindo os elementos da composição a manchas de cor definidas com precisão através de nítido contorno.

Eliminando-se as três frutas desta composição, resulta uma obra geométrica que teria encantado os concretistas dos anos cinquenta. Em outras pinturas como Limão Siciliano com Manga Rosa, o processo se repete. Porém um novo elemento de origem pop completa a composição. Faixas reais de papel de parede. Que emprestam, no caso do Gato Amarrado, um sentido novo à pintura de Aldemir. A idéia realista do trompe l’oeil que o papel de parede e o fio de barbante estabeleceram, é quebrada pelo arraigado pictóico da figura animal. Obras como estas permitem e possibilitam infinitas considerações. Há, nestas obras, intenções claras, definidas.

Não gostaria de revelá-las. Me sentiria um desmancha prazer. Esta cabe a cada um encontrar e fruir. Como fruo o das paisagens. Nessas, encontro o Aldemir que diz não, que não aceita, que recusa, que rechaça o imobilismo, o comodismo. Um Aldemir que curte as cores, as pinceladas largas, os planos amplos, que rompe a própria imagem, criando outra, nova, fresca, brilhante. Um Aldemir que ousa, desafia, provoca. Que, aos sessenta anos, comporta-se na pintura como um adolescente à conquista do mundo. Pondo prá quebrar. Bem vinda seja neste momento de transição a poesia das suas paisagens, a beleza das suas cores, o lirismo da sua emoção.

CvS. 1982


Menino de 60 anos

A entrevista que você vai ler, foi realizada no atelier de Aldemir Martins, no bairro de Sumaré, em São Paulo. Três dias depois do vernissage da mostra de pintura na galeria Alberto Bonfiglioli. Na manhã da entrevista, 21 de outubro de 1982, em uma outra galeria, a Augosto Augusta, Regina Bertzlian tomava as últimas providências para o vernissage, à noite, da exposição de desenhos de Aldemir Martins. Com estas apresentações de obras do artista, as galerias, sem pieguismos e homenagens démodées, manifestaram ao artista, o respeito à sua obra e aos seus sessenta anos de vida. Destes, quarenta dedicados à arte. Para quem chega ao atelier da rua Paracuê, 181, uma paleta com a inscrição pinturas chama logo a atenção. O nome do artista ao lado, não deixa dúvidas quanto as suas intenções: um profissional pronto a receber encomendas.

Sem preconceitos elitistas, sem bobagens “de arte pela arte”. Um profissional que Gautier teria detestado. Baudelaire, sem dúvida, amado. Michelângelo, o primeiro artista moderno, teria amado também, Michelângelo não recusava encomendas: pintava e cobrava de acordo com uma tabela. O azul e o ouro eram as cores mais caras. O azul para o céu. O ouro para as aureolas, objetos sacros, as roupas e mantos. Quanto maior o céu, o manto, mais cara a pintura. Jamais recusou um desenho para uma colcha de renda. Ou deixou de decorar um baú de noiva. Foi no Cinquecento, o nosso Aldemir. Outros que jamais recusaram pintar um baú nupcial, os cassoni, talhas, objetos decorativos para festas, têm hoje nos principais museus do mundo, obras importantes: Botticelli, Filippino Lippi e Piero di Cosimo, Andrea Mantegna. No entanto, nunca ouvi ninguém chamá-los de artistas comerciais, ou a suprema asneira de que estavam pintando de acordo com o gosto do freguês, dos mecenas, príncipes e hoje, no caso de Aldemir, dos marchands. Nestes quarenta anos, vi de perto o percurso de Aldemir Martins. Não que seja íntimo do artista. Não sou. Nos conhecemos desde que chegou a São Paulo. Acho que nunca fomos apresentados. Nos conhecemos simplesmente. Há vinte anos visito suas exposições. Há anos conversamos, trocamos idéias, rimos. Estive uma vez em seu antigo atelier da rua Arruda Alvim, 54, em Pinheiros. Há onze anos atrás, Quando saí, deu-me um pequeno chapéu de cangaceiro para o meu filho Gui, então com oito anos.

Voltei agora a seu novo atelier. Ao apertar a campainha lembrei-me do chapeuzinho de couro. Centenas de imagens passaram rápidas. Flashs de rostos, situações, frases. Imagens vividas nos anos 60, 70 e recentemente.

Uma peixada em uma pensão popular, ao lado do mercado de peixes, Aldemir subindo as escadas do Museo de Bellas Artes de Santiago do Chile. Nosso encontro na Embaixada Brasileira, a carona que me deu até o aeroporto de Pudahuel, Aldemir, Cora e Mariana, seguindo para Buenos Aires. Vejo os três caminhando para o DC-10. Mário Handa, o secretário japonês, abre a porta. Entro no novo atelier.

Aldemir conversa com Roswita Kempf sobre uma ilustração. Terminada a conversa, ficamos a sós. Ou melhor, quase. Um gato nos espreita através da grande vidraça. Sem muita cerimônia salta sobre o muro branco, observando sem muito interesse nossa conversa. Mário atende o telefone. Aldemir, com a alegria e entusiasmo de um menino, mostra-me uma obra prima: um livro de Maria Sybilla Merian sobre a fauna e a flora amazonense.

Desenhos impecáveis, minuciosos, magníficos. Feitos no Orenoco em 1735. Depois do deslumbramento mútuo, começamos a entrevista. Terminada, deixo o atelier. A idéia de que Aldemir Martins está fazendo 60 anos é vaga, imprecisa, inexistente... Ela só existe cronologicamente. Levo uma pequena gravura para Gui. Agora piloto, voando sobre a Mantiqueira. A noção de que o tempo existe para mim e para Aldemir situa-se entre um menino, um skate e um avião. Entre um atelier e outro. Nada mais. CvS

artes:: Terminada a exposição da Bonfiglioli, como você reage ao que ela provocou?

Aldemir Martins: A exposição foi exatamente isso que você falou agora há pouco. Eu fiz uma provocação. Uma provocação de ( continuação na página 7 )

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