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artes Ensaio Crítico .... 15
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A realidade brasileira

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A fera, tinta impressa sobre tela, 190 x 130 cm, 1966



De todos os críticos de arte que se debruçaram sobre a obra de Aldemir Martins, inquestionavelmente Jacob Klintowitz foi o que mais longe, foi e viu. Abaixo, parte do ensaio de Klintowitz A Realidade Brasileira, texto dos mais completos sobre Aldemir Martins, publicado em Aldemir Martins, Natureza a Traços e Cores, editado pela Valoart com o apoio da Sandvik do Brasil. CvS


Aldemir Martins é o moderno artista viajante que registrou e deu fisionomia ao Brasil contemporâneo. A sua missão foi muito árdua. Ele apresentou ao país os animais que habitavam em suas terras, os peixes que nadavam em suas águas, as variadas e multicoloridas plumagens das aves. Além disso, revigorou e mostrou alguns de seus moradores-símbolos, como o cangaceiro e a mulher rendeira. No conjunto descritivo de seu país, este artista viajante não descurou da paisagem e registrou horizontes no limite da credibilidade, as luzes explodidas e fundidas no espaço e o sol, como um deus de energia e claridade, presidia esta atmosfera panteísta. É este o Brasil visto pelo seu filho andarilho, este colecionador de imagens e sensações.

Ninguém registrou a mais íntima realidade brasileira melhor do que Aldemir Martins. Ninguém registrou mais a realidade brasileira. De uma maneira não premeditada, ele fez um percurso completo pelo seu país e mergulhou na sua extensão física, marcou a sua flora e a sua fauna, os seus tipos humanos, os símbolos de sua saga. Mais até do que isso, Aldemir Martins impregnou-se de uma vivência particular e nos devolveu esta experiência única através da expressão plástica, na qual realizou um feito extremamente raro. Estas imagens são, ao mesmo tempo, elas mesmas e referências aos modelos e são, de maneira acentuada, marcas expressivas e estilísticas de um artista. Esta universalidade do particular, a identificação do momento humano e pessoal ao momento coletivo, esta vivência da individualidade e do natural e antropológico, é dado raro em nossa época. Talvez, na cultura especifica da tauromaquia, nós tenhamos um exemplo em Pablo Picasso. Entretanto, em extensão e profundidade. temporalmente alongada e prenhe de um sentimento dilacerado, mistura de observação e memória, é possível que não haja caso igual na arte contemporânea.

As proximidades comparativas do processo pessoal tornam-se tênues, no caso de Aldemir Martins. Há exemplos particulares e delimitados no tempo, momentos em que um artista dedicou-se ao entendimento de sua gente, das raízes antropológicas e do impacto dos elementos naturais. Ou ainda, o que é mais comum, artistas que se dedicaram a registrar e interpretar o páthos de seu povo, concentraram-se na figura humana e foram capazes de expres- sar a solidão e o progresso industrial e social. E. Hopper, o americano das solidões desalentadas, é o melhor exemplo disso e é profético como o estabelecimento da solidão, depois ampliada para o país e sua vivência internacional.

Aldemir Martins é diferente, em sua dinâmica, desses exemplos, aos quais podem ser agregados algumas centenas de outros. Ele não se especializou na vertente psicológica e nem transformou em heroísmo a manifestação primária e primitiva da emoção. Nem Hopper. nem Picasso. Em Aldemir Martins o heroísmo não está manifesto, mas se adivinha na saga de uma memória afetiva transformada, de maneira extremamente humilde e não narcísica, em fato real da existência de um povo e de um país. De tal maneira essas imagens tornaram-se públicas e patrimônio coletivo, que já não saberíamos o que são os nossos peixes, os nossos animais e a figura de cangaceiro, sem esta elaboração pessoal.

O nosso conhecimento passa pelo trabalho de Aldemir Martins, Hoje, a experiência da nação brasileira, a vivência de sua realidade íntima e o percurso do artista, estão unidos. É um prodígio de experiência coletiva quando a criação de um artista organiza as matrizes da percepção de seu povo. Aldemir Martins saiu diretamente deste povo, cruzamento de culturas, e voltou a ele através de sua manifestação artística. O registro e a interpretação individual tornaram-se uma vivência coletiva de percepção e conceituação.

É redundância dizer que Aldemir Martins trabalha com o assunto nacional, com o retrato do Brasil, E não é a verdade completa, uma vez que este retrato não existia anteriormente ao seu trabalho. A definição do país, de uma maneira sutil, foi inventada por Aldemir Martins. Esta invenção, do ponto de vista da criação artística, consiste em descobrir a face universal da imagem, a individualidade única e possível destas imagens e a transformação de signos ou concretitudes em valores simbólicos e psíquicos. Deste ponto de vista, o do processo criativo, Aldemir Martins articulou e tornou forma aquilo que eram aspectos fragmentados da nossa memória, intuição e conhecimento.

Se formos qualificar o artista segundo a sua iconografia manifesta, podemos dizer, contudo, que ele se coloca como um artista que trabalha com o assunto regional e que o seu estímulo nasce da observação do natural. Ele recolhe, observa, estuda, registra os dados da fauna, da flora e da tipologia social de uma determinada região. Esta qualificação e caracterização o diferenciam, em grande medida, da tendência geral da arte brasileira e dos movimentos internacionais das últimas décadas. A arte brasileira, a par destes movimentos internacionais e de suas habituais correspondências eruditas, trabalha com as manifestações da emoção ao nível do gesto, com a emergência de símbolos inconscientes e com a reflexão em torno das formas e suas interferências no mundo da tecnologia, da psicologia, da ciência e no desenvolvimento possível e histórico das próprias formas. Da mesma maneira, as tendências voltadas para a experiência fora das tradições artísticas, ligadas às experiências da psicologia experimental ou da recuperação imaginária de estados sociais primitivos e totêmicos, estão distantes do proceder de Aldemir Martins. Por esta breve qualificação, fica evidente que o artista está fora da corrente principal que informa a nossa arte e não tem correspondência imediata no interesse que é demonstrado em ultrapassar os limites da arte para uma vivência mística, primitiva e totêmica.

Não há limites claros para o exercício da criação de Aldemir Martins. Ele trabalhou em praticamente todos os segmentos existentes na sociedade brasileira. Aldemir, com maestria, exercitou-se nas técnicas tradicionais da pintura, desenho, gravura, cerâmica e escultura. E avançou, de acordo com o avanço dos meios de comunicação do país, nas áreas do desenho industrial, da ilustração e do trabalho eletrônico de séries televisivas. A sua abertura para uma das telenovelas de maior audiência do país, “Gabriela Cravo e Canela”, realizada a partir de romance homônimo de Jorge Amado, é uma das experiências mais emocionantes da televisão brasileira. É uma obra em que o artista junta, numa argamaça única, a sua qualidade expressiva de desenhista e pintor, o seu conhecimento das entranhas emocionais do pais, a sua percepção da comunicação em massa e a utilização dos meios tecnológicos modernos. Nessa abertura, suite preparatória, apresentação do tema, caracterização emocional da realidade e da motivação do telespectador, Aldemir

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