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Aldemir por Aldemir .... 5 |
Auto-explicação de Aldemir Martins![]() O cangaceiro, nanquim sobre papel, 30 x 23 cm, 1952 |
Carta de Aldemir Martins, de Roma, para Aluízio Medeiros em Fortaleza, em 1961.
Meu novo desenho é antigo. Quando, em 1955, fiz uma série de cangaceiros líricos e truculentos, ninguém viu senão os cangaceiros, quero dizer: o assunto. Ninguém prestou atenção ao desenho, linhas, formas, manchas. Um mês antes de partir para Roma, aí por volta de julho de 1961 – oito anos depois dos cangaceiros –, retomei o filão e executei cinco ou seis desenhos, trabalhando o mais possível com manchas e formas. Outra vez ninguém reparou nada. Paciência. Na Itália ataquei violentamente o assunto e então você começou a sentir o resultado. Somente assim de longe começou a perceber alguma coisa “nova” envolvendo os temas, explorando-os de maneira “diferente”. Aqui também foi assim. Como eu estava na Europa, me chamaram até de “tachista”, o que, vamos e venhamos, é uma barbaridade. Os críticos faziam questão de dizer que eu era uma figura quase estranha, revolucionando o desenho. Crítica provinciana, você não acha? Começa pelo fato de que jamais perdi o contato com as minhas origens. Me gabo disso. Retorno sempre ao Ceará, aos seus bonecos de pano, suas figuras de carvão na parede, seus bichos no tijolo da calçada, no muro do Náutico da praia Formosa, os navios sumários e poderosos nas fachadas das bodegas de cachaça do Pirambu. Volto aos vaqueiros “assinando” o gado, às louceiras fazendo formas de panela, bules, jarras e cacos de torrar café. E tudo isso que eu carrego comigo é o meu desenho. Sempre foi. Sobre tudo isto meto o meu tracejado, que aprendi das rendeiras, ponto de mosca, cruz e bico, e rendas mesmo, trançado de palhas de chapéu de catolé e de caçuá de bananas. Bananas estão sempre cheias de desenhos amadurecendo. E as nódoas da banana e do caju na roupa da gente, fazendo desenhos belíssimos, você já viu? Tudo isto é o meu desenho, disso não quero e não posso me desvencilhar. Menino contando histórias e riscando no chão, ao mesmo tempo com ingenuidade e malícia, a malícia e a ingenuidade de quem sabe pescar de mão, seguir rastro de boi e caçar de visgo e arapuca. Arapuca que a memória me empresta para fazer o quadrado do meu desenho e nele aprisionar as “pessoas personagens” que invento e crio. O que pretendo é uma imensa sinfonia em preto e branco, sons de longe, do nosso Ceará, música pianíssima às vezes, outras vezes como um trovão, mas música vista, entendida, representada, explicada por este cabra de Guiúba que adora sol, jangada, rendeira, onda de mar, cangulo, chuva, seriguela e cheiro de terra molhada. E mais curimatã prateada e cará escuro, assim como as manchas do meu desenho. Manchas negras, pintas escuras, sombras que fogem do lombo das cavalas e se arrancham no meu desenho. Estas são as minhas raízes, que vou fazer? É por isto que eu sou, e infeliz deste teu amigo se não vivesse procurando transmitir aos outros as visões que lhe ficaram nos olhos. Você fala na minha estrutura. Que influência que nada. Minha estrutura vem de um aluno de desenho, riscador de papel que, conscientemente, aplicadamente (e apaixonadamente também), dava sua lição de riscar papel. E queria aprender a desenhar a pedra e o sol, o sol e o mar, o mar e a duna, a duna e o coqueiro, o coqueiro e o sol, o sol e a caatinga, a caatinga e o faxeiro, o faxeiro e o mandacaru – a flor do mandacaru! (A flor do mandacaru é uma planta baixa do sol, já reparaste?) Hoje, não. Não digo que sou doutor em desenho, mas aquilo que eu quero e aquilo de que gosto ou de que não gosto resolvo com o preto e o branco. Me dou ao luxo de violentar a cor com o preto e o branco. É isso: posso fazer a cor com o preto e o branco. Cor, para mim, é acidente, consequência. Com o preto e o branco faço noites de luar e praias queimadas de sol amarelo-ovo. Só com o preto e o branco. Isto para mim basta. Basta também que lhe diga que outro dia, olhando a pintura etrusca, vi o quanto tenho andado certo comigo mesmo, na forma, na linha, no traço, na trama, na mancha. Vi galinhas-d’angola iguais aos meus capotes, na trança, na armação, peixes primos dos meus, e gatos e galos e chachorros. Depois subi em cima de um morro que estava perto e gritei como um índio Cariri mandando todo mundo para o inferno. Como você vê, meu ‘novo’ desenho é antigo até por demais. Mais antigo do que eu mesmo pensava. Aldemir Martins, 1961 |
Aldemir
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Ao meio-dia, na porta da casa natal
cearense, o menino olha a paisagem da
rua: tudo branco, tudo quase sem contorno,
tudo transfigurado pela luz implacável
do sol, rei absoluto, senhor todo-poderoso.
O branco das casas, o branco da
igreja, o claro cinza do chão, a ausência
do verde, exceção dos cactos bem longe.
Homens, bichos, árvores secas e esgalhadas, numa imobilidade imposta pela presença do astro de Deus, que decidirá da vida de todos. O menino olha ao redor e, para ver, tem que cerrar os olhos: eis o homem meio deitado com suas roupas de couro, vigilante, o rifle de lado. Bem perto, cantiga suave dos bilros: a rendeira, como quem só dispõe de movimentos nos dedos céleres de suas mãos mágicas. Uma estátua. É a mesma postura da vendedora de cestos de infinitos trançados, nas feiras dos sábados: como se não vendesse, como se rezasse. No meio-dia do silêncio, meio-dia afogado de luz e de calor, o menino não se deixa dominar pela força implacável do sol de sua terra, que, se elimina a beleza das possíveis cores presentes, ainda lhe permite detalhar a marca negra do homem do cangaço, da rendeira, da mulher do cesto, dos cactos, dos bichos, da agressividade da terra que se submeteu ao fogo dos céus. Uma exceção no mundo monocrômico e estático: salta, de repente, no meio da rua, um galo de belas penas coloridas, pára, exibe-se, ausculta e desaparece. O menino guarda tudo isso na sua alma e no seu coração e nunca mais esquecerá. Quando homem feito, quis situar-se, tomar seu lugar na roda da vida, e eis que ressurge o menino e toma a mão adulta, que faz correr fácil sobre o branco de uma folha de papel o traço firme e decidido, desde o primeiro instante, revive para sempre o seu mundo, o mundo áspero, imóvel, silencioso e dramático de sua infância. Na parte superior do papel, surge o sol de ingazeiras (sol de barbante, sol do meu pai, como disse, muito depois, Mariana). E tudo que estava abaixo dele e sob o seu guante, cangaceiros, rendeiras, gatos, pássaros, etc., tudo manteve sua postura, sua imobilidade: visão primeira e definitiva que o menino impôs ao artista. Daquele momento em diante, o Brasil tinha ganho um dos seus grandes artistas nacionais, um dos seus poucos artistas nacionais, não porque invoque motivos da terra, mas porque atingiu a sua arte através da poderosa formação de homem e de artista fiel às suas origens e profundamente identificado com o seu métier, duro e fascinante métier do desenho, que ele trabalha, castiga, realiza, numa bela conquista de todos os dias. As grandes lições que aprendeu, dentro e fora do seu país, não o perturbaram: antes aprofundaram as raízes de uma obra enaltecida pela láurea máxima da Bienal de Veneza. É deste artista que a Bahia vai conhecer os últimos trabalhos, nesta exposição em que o seu mundo vem envolvido pela riqueza das cores, decerto captadas nas suas andanças por outras terras. Entre elas, provavelmente, a nossa. Odorico Tavares, Bahia, maio de 1963 |