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4 .... Memória artes
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Ásperos na sua reserva

artes
A seca, l·pis, 27 x 21 cm, Fortaleza, 1945

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Curral vazio, Ûleo sobre tela, 50 x 70 cm,1945, coleÁ„o Arthur James Lisboa


continuação da página 2
palha de carnaúba, nos desbotados santos modelados por santeiros populares, nas cerâmicas vistosamente coloridas. São cores, formas e linhas que marcam uma paisagem física, humana e social, da qual Aldemir Martins faz parte integrante e que é por ele interpretada e fixada com sincera paixão.

No apartamento não há fronteiras do ateliê, pois este espraia-se por todas as dependências, invade os quartos e as salas, com os desenhos de Aldemir Martins enfileirados nas paredes, pendurados nas portas e tecidos nas cortinas, repousando sobre as mesas, guardados secretamente nas gavetas. Por isso esse pequeno ateliê, de gana latifundiária, dá-nos a impressão de que foi fincado num trecho qualquer da terra nordestina, pois tudo está impregnado do que é característico àquela região, impressão que nos acode vinda daqueles objetos e dos desenhos de Aldemir Martins.

Plantado no seu espaço de origem – qual por um mago recriado –, numa constante apreensão das formas, das linhas e das cores daqueles objetos – cores, linhas e formas que entram pelos seus olhos e banham a sua atenta sensibilidade, Aldemir Martins vai conscienciosamente enriquecendo a arte brasileira com um desenho do mais apurado nível artesanal e dos mais genuinamente nacionais e belos de que temos notícia.

A técnica do seu desenho se, por um lado, revela um aprendizado consciente com o que há de mais avançado na atualidade, mostra também que Aldemir Martins encontrou um estilo próprio.

Estilo inconfundível que se formou do amálgama das formas mais díspares que os olhos maravilhados do adolescente retiveram para sempre – dos espinhos em lança dos cactos, mas também dos bilros e das almofadas das rendeiras; da rudeza das atitudes dos bandoleiros e vaqueiros e de suas indumentárias, mas também da felina maciez dos gatos, dos olhos arredondados das corujas e dos peixes; da raquítica flora convulsiva, mas também da delicada placidez dos passarinhos.

Casando com mestria as linhas retas em toda sua violência com a suavidade das curvas e das formas arredondadas, Aldemir Martins como que mostra ser o nordeste a região ao mesmo tempo agressiva e acolhedora, onde os homens, os bichos, os pássaros, os objetos e as plantas unem-se para resistir à fúria azul do céu sem nuvens. A aguçada visão de Aldemir Martins sabe encontrar e valorizar, naquela paisagem cinzenta, as cores genuínas.

Seu colorido, por essa razão, não possui nuança – é o verde, o vermelho, o azul, em toda a sua pureza. E assim o nordeste, numa profunda visão de conjunto, mas também numa fixação de pormenores significativos, vibra nos trabalhos de Aldemir Martins.

Convenhamos: não é fácil aceitar e, mais que aceitar, ser contaminado pela beleza primitiva da arte de Aldemir Martins. Seus desenhos não se entregam facilmente ao primeiro olhar curioso. São ásperos na sua reserva. O espectador desprevenido enche-se de espanto com a agressividade dos traços, que saltam do papel como espinhos, ou com o tom violento das cores. Vencida, porém, a hostilidade dos primeiros contatos e revelada a intimidade do segredo, os desenhos de Aldemir Martins passam a fazer parte da vida daqueles que tiveram a ventura de aproximar-se e descobrir a beleza dos traços pretos e dos espaços brancos, que Aldemir une num conjunto indissolúvel. É que o mundo criado por Aldemir Martins é, ao primeiro olhar, ríspido e inóspito, como ríspido e inóspito é o nordeste, mas fraterno e profundamente humano se entregamo-nos de coração aberto àquela região.

Tudo o que marca a martirizada terra nordestina vem sendo fixado pelo traço de Aldemir Martins – o homem quase bárbaro, os passarinhos, os peixes, os gatos, as plantas, os galos, as frutas, os objetos de trabalho, os rudes instrumentos musicais, tudo, enfim, que compõe aquele mundo. Embora sem fazer apanhados de cenas da vida nordestina, mas tão somente retendo em seus desenhos figuras isoladas de homens, bichos e coisas, Aldemir Martins consegue, tal o vigor de sua arte, retratar artisticamente aquele ambiente. Acompanhar, no que for possível, o trabalho criador de Aldemir Martins, é convencer-se da seriedade com que ele encara o seu ofício. O desenho acabado para a embevecida contemplação não surgiu facilmente de um ímpeto. Ele passou por várias etapas em sua elaboração e em sua feitura. Tendo a idéia plástica despertado em Aldemir Martins, ela é fixada nervosamente num primeiro esboço feito num pequeno pedaço do primeiro papel encontrado, mas que nunca ultrapassa de quatro centímetros de tamanho. Esse esboço é guardado (e Aldemir Martins possui centenas desses pequenos esboços enchendo caixas de charuto) até que a forma amadureça por completo em Aldemir Martins, quando então o esboço vai ganhando proporção, precisão e encaminha-se para atingir o desenho definitivo. Nada melhor para ilustrar o labor de pesquisa de Aldemir Martins do que a série de desenhos sob o título geral de “Cora”, onde são visíveis as diversas etapas vencidas em busca da solução última. E apreciamos aí apenas a fase final, isto é, a fase em que o desenho já ganhou as devidas proporções, embora o primeiro desenho ainda não seja aquele que Aldemir Martins almeja como último e acabado.

Num combate cerrado consigo mesmo, lançando-se de corpo e alma para a conquista sempre alcançada do que almeja, é assim que trabalha Aldemir Martins, esse artífice das cores e das linhas, esse prestidigitador da beleza.

Aluízio Medeiros, Fortaleza, 1943

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