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Por que Aldemir Martins?

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Foto: Ricardo Benichio - Arquivo Aldemir Martins
Aldemir Martins, em seu atelier da rua Paracuê, década de 90

Recentemente uma jovem pouco versada em artes plásticas ao me ver selecionar obras de Aldemir Martins, teve a ousadia de comentar que uma pessoa lhe dissera que Aldemir há muito se copiava e que não tinha mais nada para contribuir à arte contemporânea brasileira.

Senti a pressão subir, o sangue ferver. Alinhei cinco vasos de flores lado a lado e disse: Olhe bem. Foram pintadas de 1986 a 2001. Percebe a diferença? Veja a cor, a concepção do espaço, o equilíbrio, a harmonia. O figurativo, o abstrato. Esparramar ossos por plataformas de estações da Alemanha, queimar galinhas em Paris, não contribui em nada para a arte contemporânea brasileira. É tautologia de subdesenvolvido. De 5º mundo.

Sem ser vanguardoso, modernoso, Aldemir contribui diariamente com sua parcela. Dos artistas brasileiros, é o único que tem estampado na testa, “MADE IN BRASIL”. Brasil com S.

Mas, por que Aldemir? Se as razões acima não fossem suficientes, diria que 2002 será o ano Aldemir Martins. Várias exposições estão programadas, publicações idem. Aproveita-se seu octogésimo aniversário para homenageá-lo. Não é meu caso. Só me interessa o que Aldemir fez e foi nesses oitenta anos. Aniversário, não.

Em setembro de 1999 editei e publiquei Picasso de A a Z. No vernissage da exposição: Picasso – Anos de Guerra – 1937 – 1945, no MASP, em edição extra, artes: circulou com exclusividade no museu. De lá para cá, o desejo de aplicar o modelo de Picasso de A a Z à prata da casa não me saiu da cabeça. O resultado está aqui.
Carlos von Schmidt


Memórias sobre Aldemir Martins

A memória arrasta-me para o passado: revejo Aldemir Martins num velho sobrado entre outros artistas, escritores e poetas. É um grande salão de teto baixo, tão baixo que as antigas telhas são tocadas pelas nossas mãos; as paredes todas cobertas de esboços de desenhos, de quadros inacabados, com uma ou outra cadeira, alguns cavaletes e dois divãs cobertos com peles malhadas. Esta é a sede da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, mas que todos nós chamamos simplesmente de “o ateliê”.

Na arrumação, anda o gosto inquieto do inquieto Mário Barata. Ali estão diariamente, sonhando grandes quadros, discutindo cores e formas, imaginando viagens, Antônio Bandeira, Barbosa Leite, Carmélio Cruz, Inimá (desgarrado das montanhas mineiras), Barrica, Raimundo Kampos, Jean Pierre Chabloz (outro desgarrado das regiões montanhosas, embora da longínqua Suíça) e, no meio de todos, o inseparável cachimbo a fumegar, os olhos pequenos cintilando, o grande apaixonado das artes plásticas, Mário Barata, sempre a exumar velhíssimas idéias, sempre a agitar as últimas notícias inovadoras no campo multicolorido da pintura. Neste grupo, onde estão sempre presentes poetas e escritores, Aldemir Martins, também diariamente, é encontrado. Ele é um autodidata. Autodidata são todos os outros.

Aldemir Martins, como os outros, busca sofregamente soluções para os seus quadros. Diariamente pinta, desenha, cava xilogravura, faz aquarela. Não tem bem certeza ainda qual seja o meio pelo qual possa transmitir a sua sincera e um tanto rústica ternura pelo mundo, pelos homens, pelos bichos, por tudo aquilo que lhe cerca. Seria mesmo a pintura? Ou a aquarela? Seria a xilogravura ou o desenho? Aldemir Martins só não tem dúvida da ânsia que brota do mais fundo de si mesmo, mesclada com as vivas recordações da infância e adolescência, ânsia em fixar, através das artes plásticas, o espetáculo da vida que lhe circunda.

Esse desejo de agarrar a vida naquilo que ela possui de mais típico é um sentimento arraigado nos jovens artistas, poetas e escritores que viviam na plácida Fortaleza, aí pelos recuados anos de 43. Esse desejo, mesmo de imprecisão, é visível nestas palavras de Antônio Bandeira que, falando a um repórter sobre si mesmo, estava na verdade, sendo o intérprete de todo o grupo: “Procuro algo, embora não saiba bem o que seja. Mas continuo na caça. Por isso subo os morros nos domingos ensolarados para pintar gente pobre, gente que traga na fisionomia traços de uma vida, boa ou má, não importa.” Eis aí o estado de espírito que a todos toca, domina e inquieta.

Assinalemos mais um fato que mostra bem a vitalidade desse grupo: se o amor pela arte e pela literatura a todos une, a todos separa a maneira de transmitir ao mundo o que cada um carrega dentro de si. É patente a diversidade de técnicas e a riqueza de formas, tanto entre os artistas quando entre os poetas e escritores. Aí estão hoje, como exemplos maiores. Antônio Bandeira e Aldemir Martins, tão distantes um do outro nos caminhos plásticos que percorrem, eles que foram durante tantos anos amigos inseparáveis na cotidiana busca dos segredos da pintura e do desenho.

O resguardo contra as fáceis influências e a liberdade na sofrida escolha de uma técnica e de uma estética, conquistados desde os instantes iniciais do seu paciente aprendizado, deram a Aldemir Martins uma inabalável consciência nas suas descobertas e soluções dos mais recônditos segredos plásticos. O que não implica dizer que essa convicção seja capaz de banir a pesquisa constante e a permanente insatisfação para consigo mesmo, sem que se possa haver uma arte viril e estuante. A pesquisa e a insatisfação são características marcantes do temperamento de Aldemir Martins, virilidade estuante de vida que é uma qualidade singular do seu desenho.

O aprimoramento constante do domínio sobre a arte do desenho, a busca permanente de novas soluções para os novos problemas, a resolução de impasses que surgiam a cada instante – se estas eram qualidades presentes no autodidata Aldemir Martins, quando ia abrindo, munido do seu talento, as picadas das artes plásticas, naquela tranquila província de Fortaleza, nos idos de 43, onde se fez artista, essas são qualidades cada vez mais presentes no Aldemir Martins de hoje, conhecedor exímio de todo o mundo de beleza que é possível ser extraído do preto e branco, das linhas e formas singelas, das cores puras.

Viagem 1945

A bagagem de Aldemir Martins, quando ele arribou de Fortaleza em busca do sul, em 1945, compunha-se de pouca coisa, mas era o essencial – talento congênito, embora ainda semivirgem; convicção assentada de que ao escolher as artes plásticas para dar expansão aos seus sentimentos optara pelo caminho correto; decisão de que não faria outra coisa para poder viver senão pintar e desenhar, pois esse era o seu destino, mesmo que fosse amargo e áspero.

Munido desses apetrechos, Aldemir Martins desembarca no Rio, onde permanece menos de um ano, indo para São Paulo em seguida, aí fixando residência. É no sul que Aldemir Martins conhece de perto os quadros dos melhores pintores, desenhistas e gravadores brasileiros; que enriquece e aprimora os seus conhecimentos das artes plásticas, que se decide pelo desenho, onde planta os seus pés e mergulha suas mãos, caminhando desenvolto pelas terras infindáveis do preto e branco; que abraça com paixão uma genuína temática nacional, nacional porque regionalmente nordestina; que consegue um estilo inconfundível e marcadamente seu; enfim, é no sul que Aldemir Martins se realiza plenamente como artista e projeta-se internacionalmente.

Mas alçar-se à posição alcançada por Aldemir Martins significou para ele – como ainda agora continua a significar – um esforço continuado, o trabalho permanente, jamais o desfalecimento diante das dificuldades, a obstinação que era o sangue da sua raça indomável a correr nas veias, nunca o êxito subindo-lhe à cabeça, sempre a insatisfação pelo que já foi realizado.

Na Oficina das Cores e das Linhas

Penetrar no pequeno apartamento de Aldemir Martins, localizado no centro mesmo da capital paulistana, à rua Marquês de Itu, é sentir nos olhos a violenta claridade e respirar o quente ar nordestino, é palmilhar o áspero e seco chão cearense.

Despojado do que possa haver de supérfluo, numa síntese apenas guardada pela memória, ali estão a paisagem e o homem nordestinos. Ali, naqueles objetos pendidos, arrumados: nos comoventes e doridos ex-votos, nos punhais agressivos, nas ríspidas esporas, nas amorosamente talhadas cuias de coité e de cabaça, nos silenciosos chocalhos que foram outrora de bois e de cabritos, nas venturosas cuias-de-vela, nas tenras bonecas de capim mandante, no meticuloso entrelaçado das esteiras de
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Edição Extra - Aldemir Martins

Créditos
Direção, Edição e Arte:Carlos von Schmidt Revisão: Adriana C. Cintra Fotos: Gui von Schmidt, Rita Feital Foto da capa: Francisco Albuquerque, 1946, Rio de Janeiro. Digitação/Arte final: UmQuarto Propaganda Impressão e Fotolito: Digital Fontes referenciais: Aldemir Martins, Natureza a traços e cores, Jacob Klintowitz. Aldemir Martins. Linha, cor e forma, Emanoel Araújo. artes: Edição N.o 56 – Dez./Jan./Fev./1983 Edição N.o 70 – Set./Out./Nov./1990

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A diagramação da versão original, impressa deste jornal foi alterada para a versão digital.

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