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    Matérias e Críticas

    O VÔO CIRCUNFLEXO


    NOGUEIRA MOUTINHO

    Se me fosse facultado elaborar uma geometria poética baseada em O vôo circunflexo, de Rubens Rodrigues Torres Filho, ela traduziria seus poemas em superfícies côncavas e convexas, à maneira, digamos, dos quadros de Vasarely: "a praça, com janelas para a praça". Busca de interioridade, mas não da subjetividade. Explico-me: o desígnio do poeta não é ensimesmar-se, aprofundar o próprio eu, mas sim atingir o íntimo das coisas. Ora, desde Alberto Caeiro sabemos que "o único sentido íntimo das coisas / é elas não terem sentido íntimo nenhum". Logo, o poeta persegue seu desígnio dialeticamente, a sondagem do interior expulsa-o à superfície, tudo se resolve em trompe-l’oeil, e ele pode afirmar que afinal busca "nada do que se arranha com os dedos, nada do que se compreende com a cabeça: alguma coisa entre os dois, invencível".

    Por isso é com pureza nítida de épura que muitos destes poemas ferem a vista, tensos entre o anverso e o reverso, entre o que flui e o que permanece, tendendo freqüentemente à aporia: "Esta palavra contém / um poema / este poema não / contém palavras", ou "a água / lavando a chuva por dentro", ou no jogo verbal de um poeminha francês, tão ao gosto do primeiro Surrealismo: "A la fleur de ma jeunesse / elle versa dans le vice / et dans le vice versa".

    Em época que é raro publicar-se um volume de poemas sofrivelmente coerente, o de Rubens Rodrigues Torres Filho define-se por quase asfixiante vocação à unidade. Não se trata de versos escritos e reunidos ao sabor do acaso, mas de objeto voluntariamente estruturado: um livro. Não é a associação inusitada de vocábulos que ali impressiona, é o imprevisto das metáforas ou, para repetir o próprio poeta, "são indagações / cuja resposta é o contrário da linguagem".

    (Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1981)



    ALFREDO BOSI

    Se O vôo circunflexo tem algo em comum com antigos cancioneiros, o seu autor agora é filósofo de uma era estranha em que a consciência percebe, um tanto confusamente ainda, que significante e significado só de raro em raro atingem a perfeita união conjugal, céu absoluto e breve no qual conquistar a identidade é saber perdê-la. Essa fusão transparente de corpos opacos exige procura incessante e conhece bem o sabor da decepção. A experiência amarga e ao mesmo tempo leve, irônica, de uma discronia de corpo e sentido, de desejo e ser, enforma os poemas deste Vôo que, a rigor, resistem humoradamente, ludicamente, a qualquer partição temática.

    O que fica parece gestar-se aquém da tematização e das suas ciladas. Aliás, faz parte desse jogo de desencontros a fuga ao tema fixado e determinável. Até mesmo a unidade tonal, que costuma revelar a consistência do estado de alma, perde aqui toda pretensão ao estável, ao único. A ironia romântica é divisão, consentida agora, se não procurada pelo filósofo-poeta. A tentação, historicamente inevitável (carícias da cultura!), é pender para o maneirismo da própria divisão e gozar da vertigem aparentemente infinita dos significantes. Mas as boas vertigens são passageiras, ou melhor, encontram o seu modo de existir no interior de um tempo de relações duráveis e fortes, o tempo do cancioneiro.

    William Blake, vidente, falava desses turbilhões que as coisas encerram em si; o que é uma verdade hoje divulgada pela Física mais elementar; e miticamente nos advertia do perigo de perdermos a alma arrastados pelo vórtice. Pensava na idolatria, talvez. Mas nem Blake nem Rubens deixaram de atravessar o fluxo arrebatador ou sinuoso, aliciante, das palavras-coisas que guiam a mente para fora da linguagem, depois para dentro, de novo para fora... até lançá-la para outra palavra-coisa, outra mais, até o silêncio. O jogo, que parece uma roda sobre o nada, circula no cancioneiro de sentido e nonsense a que Rubens chamou O vôo circunflexo.

    (ISTOÉ, 22 de abril de 1981, versão completa em Almanaque, n° 13)



    CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO

    Reunindo textos de trajetória iniciada em 60, esse livro destaca-se como um denso trabalho de construção lírica, pontuada pela auto-reflexão e pelo corte filosófico, sutilmente poetizado num amplo leque de invenção e elaboração verbal.

    (Justificativa da atribuição do Prêmio Jabuti)



    DONALDO SCHÜLER

    Vôo é metáfora adequada do que é apanhado em processo, do que se faz e se desfaz, do que se inaugura e se destrói, e que só pode ser percebido no fazer que se aniquila, no traço que se apaga. O vôo é circunflexo por se confundir com a escrita. Anula-se a diferença entre a escrita e aquilo sobre que se escreve, entre a poesia e a vida. Tanto uma como a outra resumem-se no escrever sobre a areia, ou nem tanto – para ficar na imagética do livro –, num escrever sobre o espelho das águas.

    Daí a solicitação do olhar. A aventura errante da escrita requer a mesma errância do olhar. O olhar do leitor tece e desfaz o tecido, como o poeta escreve e afoga o escrito no tinteiro. O leitor assiste a um espetáculo que se renova. O ritmo da poesia semelha ao movimento da dança. Desfazem-se completamente as fronteiras das artes espaciais e temporais. O olhar é solicitado a assumir comportamentos do ouvido, já que o poeta imita em muitas páginas composições musicais.

    Não se busque profundidade na poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho. Seus versos a excluem, percorrem a face externa das coisas. O mistério do amor desfaz-se na conjunção de superfícies em que a união ilumina até mesmo as entranhas.

    Como as formas não se apresentam fixas ao olhar-ouvido, o poeta persegue os vestígios, as coisas se fazendo, como o começo da lágrima e não a lágrima feita.

    A invenção de sonoridade e ritmos não é o menor dos méritos de Rubens Rodrigues Torres Filho. Desfaz também a pretensa hostilidade entre o pensador e o poeta. Hostilidade criada, aliás, não pelos poetas, mas pela melhor estirpe de filósofos – os gregos. Professor de filosofia na USP, ensaísta e tradutor de textos filosóficos, redime a poesia da dura referencialidade em que ela, por fraqueza, por falta de poder renovador, por vezes, se perde.

    Se o texto filosófico se povoa de momentos poéticos, como acontece nos escritos de Platão e Heidegger, vemos aqui o texto poético absorver a densidade do pensar filosófico. O lucro da poesia é inquestionável.

    (O Estado de S. Paulo, 14 de junho de 1982)



    (1981)

    Poesia e Universidade

    CACASO (Antônio Carlos de Brito)

    Existe um fenômeno literário paulista interessantíssimo: a poesia dos professores universitários ligados ao circuito USP-Unicamp. Aí temos a Walnice Nogueira Galvão, o Carlos Vogt, o Bento Prado Jr., o Flávio Aguiar, o Modesto Carone, o Roberto Schwarz, e certamente outros que desconheço. Alguns já têm versos publicados, outros não, mas no geral dos casos são mestres da construção, uns mais cerebrais, outros mais maneiristas. E o nível de qualidade dos poemas, sempre elevado, deriva quase que diretamente do nível de formação crítica da pessoa: são profissionais competentes nas suas respectivas áreas, pesquisadores sérios, doutores em sociologia, crítica literária, filosofia, e que, por uma questão simples de envergadura intelectual, transferem consistência ao que criam.

    Essa poesia, não obstante, acaba ocupando o lugar de um capricho bem cultivado, algo de que não depende o ganha-pão nem pesa muito na afirmação da identidade, mas onde se pode investir muita capacidade organizativa, depuração do estilo, paciência construtiva, efeitos gerais do gosto e da inteligência aplicados ao texto. É a partir daí que podemos ler e relativizar 0 vôo circunflexo, segundo livro de poemas do filósofo-poeta Rubens Rodrigues Torres Filho, ensaísta, tradutor de Nietzsche, Fichte e Schelling.

    A sensação imediata que a poesia do Rubinho nos dá e a de leveza e musicalidade, uma graça de movimento que seduz à primeira vista, e que nos expõe uma espécie de erudição dos estilos, capaz de imitar com humor e requinte retórico qualquer época ou sotaque literário. 0 estilo desse vôo é o de um caleidoscópio de simulações, o que faz com que todos os poemas sejam poéticas ostensivas, numa demonstração incomparável de habilidade assimilada e aplicada. Isso chama a atenção para a grande importância que há na acumulação de conhecimentos e técnicas no sentido de ampliar as possibilidades e a liberdade do artista. Abrir espaço para a expansão de sua espontaneidade, sua sensibilidade, sua pessoa. Para que serve uma habilidade? Deveria ser para isto: para servir a espontaneidade, para fazer com que a experiência daquele indivíduo se manifeste, nascendo assim uma originalidade. É desta síntese: envergadura intelectual, erudição + espontaneidade, que depende o nível e a complexidade da criação artística. Apesar do jogo lúdico e da gratuidade que percorrem o livro, e que são requisitos da criação artística, o seu virtuosismo parece disfarçar um niilismo mais profundo, que vibra como uma sensação de vazio na experiência final do leitor.

    Na sucessão de despistamentos a que somos levados, a sensação que perdura é de rarefação, de falta. Mas isso também está tematizado por essa poesia que parece (simula) saber tudo, mas que patina sobre o nada. Há qualquer coisa do esgrimista hábil, senhor de todos os golpes e estilos, mas treinado sobretudo para o desempenho simulado, de salão. Ou melhor: o simulado é que é o verdadeiro. E o verdadeiro, o que é? Ora, o verdadeiro é apenas mais uma das simulações... 0 vôo circunflexo, livro admiravelmente bem escrito, tem muito a ensinar e um pouco a aprender com a geração de poetas marginais surgida na década passada, onde a força está do lado da experiência revelada, mas que padece de incultura e desqualificação formal.









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