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    Matérias e Críticas

    Geral
    - Poesia aberta para balanço (Claudia Thevenet)
    - A licença poética do filósofo (Yudith Rosenbaum)
    - Intervalo e Enigma (Salete de Almeida Cara)


    Poesia aberta para balanço
    Claudia Thevenet

    O filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho lança seu sexto livro de poemas, 'Novolume'.

    "Caríssimo Rubens, agora sim, já posso lhe dar os parabéns com conhecimento de causa. Comprei 'Novolume', caprichosíssimo em todos os aspectos. A capa do Waltércio, sem ser figurativa, consegue, além de belíssima, dizer o que o título diz. 0 ovo, em áspero contraste com a pequena pedra e com o fundo rochoso, o novo deflagrado, além de pelo próprio ovo, pelo pano recém-aberto, o lume presente no contraste da luz do ovo com o escuro da pedra e do fundo rochoso. Escuto até o alto volume do silêncio de tudo que, na capa, no título, quer se manter enigmático".

    As congratulações feitas por carta pelo amigo e poeta carioca Alberto Pucheu servem de referência ao poeta, escritor, tradutor e historiador da filosofia moderna Rubens Rodrigues Torres Filho para definir o espirito de "Novolume", seu sexto livro de poesias, recém-lançado pela editora Iluminuras.

    - Essa interpretação do Alberto reflete as coisas que estão dentro do título, inventado por mim. Basicamente é isso: tudo reunido no volume. Ao mesmo tempo, diz-se que um livro vem a lume quando ele é publicado. "Novolume" seria portanto uma reedição, um sexto livro que fagocitou os outros cinco - define o autor.

    Prefácio compara o autor de "Novolume" a um trapezista

    Com projeto gráfico da capa assinado pelo artista plástico carioca Waltercio Caldas, a publicação, além de trazer 12 poemas novos escritos entre 1994 e 97, compila cinco publicações anteriores do escritor paulista - "Investigação do olhar" (1963), "O vôo circunflexo" (1981), considerado o melhor livro de poesia do ano pela Câmara Brasileira do Livro, "A letra descalça" (l985), "Poros" (1989) e "Retrovar" (1993). Mas inclui também poemas avulsos e inéditos antigos e ainda 11 traduções de poesias de Rimbaud, Goethe e Nietzsche, entre outros. "Novolume" é um balanço e uma reunião da obra poética do escritor. Uma idéia que já vinha sendo maturada de uns anos para cá.

    - Faz um tempo que estou com esse projeto. Quando publiquei "Retrovar", tinha pensado em fazer "Retrovar e o resto", mas não era o momento oportuno, nem era viável economicamente - lembra Rubens.

    No prefácio à edição, um texto de Fernando Paixão compara o poeta a um trapezista: "Como num trapézio, a oscilação entre o alto e o baixo fecha um círculo envolvendo tensão e vertigem. Vamos ao circo e sentimos o frenesi, a arte do trapezista se desenha no intervalo. Sabendo disso, Rubens soube renunciar conscientemente à possibilidade de uma poética monotonamente elevada", diz o texto. Rubens tem sua interpretação da metáfora:

    - Todo esse texto saiu dessa intuição. Ele criou uma imagem a partir da coisa do salto mortal, de um vôo meio circunflexo, da respiração - diz. Já a matéria-prima para construir seus versos, Rubens garimpa no imaginário, para tecer, aos poucos, sua arquitetura de palavras. Sem anotações prévias ou relação direta com a realidade. A bússola da inspiração oscila de acordo com a maré da emoção.

    - Não anoto nada, quando me sento com o caderninho já estou com o poema pronto na cabeça. Ele começa a se formar e, de repente, você descobre que está com um verso na cabeça e, a partir desse verso, pode puxar um fio que gera uma associação de idéias. Meus personagens são pura ficção, mas podem ter como ponto de partida uma situação elaborada a partir de um fato real - explica.

    Um exemplo é o segundo poema do livro, "Nítido céu": "Nítido céu plural estacionado/ no ângulo das nucas que flexionam/ alguns anjos pedestres como somos/ ao empinar narizes sem soberba". 0 tema, colhido de um passeio em noite estrelada, é fruto de um simples olhar para o céu.

    Depois vem a compilação dos outros cinco livros, seguida do capítulo de avulsos e inéditos antigos, dedicado àquelas obras publicadas em jornais e revistas ou inéditos, como "História do poeta apaixonado", de 1959. Entre os poemas novos está "Curriculum":

    "Ser qualquer um mas ter alma de nobre
    Correr perigos sem temor indigno
    Paquerar a princesa apetitosa
    Vencer o ogro, transformar o rei em sogro
    e envelhecer amado pelo povo".

    A parte reservada às traduções parece ter constituído a tarefa mais árdua de "Novolume". A seleção de obras traduzidas baseou-se num critério prático:

    - Estes foram os únicos poemas que eu consegui traduzir. Acho que traduzir poesia é muito difícil, você tem que ter muita predileção por um poema, saber de cor, gostar muito para conseguir entrar nele. Essa tradução que eu fiz do Rimbaud, "As catadoras de piolhos", eu devia ter uns 25 anos quando tentei pela primeira vez e não consegui traduzir. São poemas antigos, têm que ter rima, mas a língua não tem o mesmo ritmo, até chegar numa coisa parecida é complicado. Eu sou tradutor de prosa, traduzo filosofia. Os poemas que eu consegui traduzir estão aí - conta.

    Quanto às associações entre filosofia e poesia feitas quando se comenta o seu trabalho, Rubens é categórico:

    - Prefiro separar. Acho que essa tendência de ficar procurando filosofia na poesia ou vice-versa não dá em nada. Só porque minha profissão é essa? É a mesma coisa que relacionar a poesia de João Cabral com a diplomacia. Uma é o ganha-pão, a outra é a literatura.

    Rubens Rodrigues Torres Filho, paulista de Botucatu e pai de Marcela, 5 anos, Carol, 15, e Joca, 28, os "três momentos mais felizes" de sua vida, é historiador da filosofia moderna.

    - Esse profissional é, basicamente, um leitor que faz análises de textos e procura mostrar linhas de ligação e identificar o modo como certos problemas surgiram. É difícil sair da caricatura que se tem de um autor. 0 filósofo Fichte, por exemplo, era um idealista absoluto, mas quando você vai lá ver o que ele escreveu não é nada disso.

    Escritor dirige uma coleção
    de ensaios filosóficos


    Estudioso e tradutor das obras de Kant, Fichte, Schelling, Nietzsche, Adorno e Benjamin, Rubens publicou ainda dois livros em prosa: "0 espírito e a letra - A crítica da imaginação pura em Fichte" (1975) e "Ensaios de filosofia ilustrada" (1987). Também idealizou e dirige, desde 1988, a coleção "Biblioteca Pólen" da Iluminuras, voltada para a tradução de textos filosóficos de escrita requintada e tradução precisa. Com site na Internet a coleção já conta com pelo menos três lançamentos acertados para 1998: "Fragmentos para a história da filosofia", de Schopenhauer, "Laocoonte", de Lessing, e "Diálogo sobre o homem e suas relações", do pouco conhecido holandês Franz Hemsterhuis.

    Num universo em que trafegam filosofia e poesia, o trapezista Rubens preenche suas pausas de respiração com o cotidiano e memórias das barricadas da Paris de 68, quando era estudante da Sorbonne, xícaras de café, a releitura de "0 escorpião encalacrado" de Davi Arrigucci, o jazz de Miles Davis, uma litogravura de Amilcar de Castro, lembranças dos papos com Mira Schendel ("Ela adorava filosofia"), um risoto de morango no restaurante Mamarana, a "pause cafe" no La Villete e a paisagem da Praça Vilaboim, endereço do poeta no bairro de Higienópolis. Apesar de toda a ficção que pauta a poesia de "Novolume", essas referências palpáveis parecem estar todas lá, reprocessadas pela magia do verso.

    (O Globo, 20 de dezembro de 1997)



    A licença poética do filósofo
    Yudith Rosenbaum

    Aos 45 anos, Rubens Rodrigues Torres Filho lança novo livro e rima poesia com filosofia.

    Em meio aos bares da rua Maria Antônia, na efervescência dos anos 60 em São Paulo, um jovem estudante é interpelado na calçada por um ilustre personagem da intelectualidade paulista: "0 Roberto Schwartz me mostrou um poema seu. É uma das melhores coisas que eu tenho lido ultimamente em literatura brasileira." 0 jovem poeta era Rubens Rodrigues Torres Filho, menino-prodígio da Filosofia da USP no início dos anos 60, e que acaba de lançar o seu quinto livro de poesias, Poros, pela coleção Claro Enigma (Ed. Duas Cidades). E o súbito elogio vinha do crivo rigorosíssimo de Antônio Cândido.

    "Fiquei sem fala", relembra esse botucatuense de 45 anos, que deixou as montanhas para seguir as pegadas do pai e do avô, advogados no interior. "Vim a São Paulo predestinado a ser um intelectual da elite dominante", comenta, "e entrei no colégio Mackenzie para depois prestar o vestibular para Direito na Faculdade do Largo São Francisco." Mas cedo Rubens descobriu que era mais interessante atravessar a rua e assistir às aulas de Fernando Henrique Cardoso. "Eu ficava maravilhado com o discurso fluente e inteligente do Fernando. Eu não entendia uma palavra, mas sentia uma atração irresistível por aquele desconhecido absoluto." Daí para a Filosofia foi um passo, prestando o vestibular às escondidas do pai e entrando em segundo lugar ("tive sorte, sei lá"). Rubens teve de ingressar também em Direito para cumprir o compromisso familiar: "Mas não tinha a menor vocação. Direito era um curso muito chato, pura corrida de obstáculos para chegar ao quinto ano. 0 que ficou do advogado no meu trabalho hoje vem mais da personalidade forte do meu pai: um discurso argumentativo consistente, ou seja, 'ganhar no papo'", brinca.

    Vivendo uma época de intenso convívio intelectual, Rubens compartilhou da amizade dos que hoje são estrelas fulgurantes. Como o filósofo Gérard Lebrun, amigo e o professor que mais o influenciou: "A aula dele era de uma expressividade enorme. A leitura que ele fazia dos filósofos era sempre surpreendente, ia além dos manuais." Colega de turma de Marilena Chauí, atual secretária da Cultura do município de São Paulo, Rubens assistia às aulas extras que Lebrun dava aos professores Rui Fausto, Bento Prado Jr., José Arthur Giannotti, entre outros, interessados por Kant.

    0 próprio Giannotti faz questão de falar de seu "talentoso aluno": "É a pessoa que melhor manuseia a língua portuguesa. Sua poesia é extremamente refinada e culta, assim como suas análises filosóficas." E acrescenta enfático: "Ao contrário de tantas pessoas na USP [Rubens é atualmente professor de História da Filosofia Moderna], ele não tem nenhuma gana de poder. Ele só quer cuidar do verbo, da letra, dos filhos e dos seus amores."

    A fascinação por Lebrun lhe valeu o interesse pelos idealistas alemães, tendo traduzido, entre outros, Fichte e Schelling. "Descobri Fichte lendo a tradução francesa de A destinação do homem e percebi que havia ali uma alternativa à questão da liberdade em Sartre, justamente via Kant. Nessa época inventaram o mestrado e acabei me definindo por Fichte." Rubens não conta, mas o seu ensaio 0 espírito e a letra: a crítica da imaginação pura em Fichte (Ática, 1975) é um dos raros títulos brasileiros que integram a bibliografia alemã sobre o tema. Já os Ensaios de filosofia ilustrada (Brasiliense, 1987), de grande repercussão na época, são referência constante dos estudos na área.

    Pensar o neokantismo tornou-se, a partir daí, a via principal das reflexões do filósofo Rubens: "Esse espaço entre a crítica da razão e o aparecimento do hegelianismo é muito rico. É um momento germinal, de abertura para o pensamento contemporâneo." Essa mesma abertura é marca da pessoa e do poeta, como afirma o amigo Fernando Paixão, editor da Ática e também poeta, que lançou recentemente o livro Fogo dos rios, pela Brasiliense: "Rubens explora as várias relações com a palavra. Uma verdadeira Kama Sutra poética." Para Paixão, Rubens não faz parte do coro dos contentes nem dos extrovertidos. "Talvez pertença aos observadores sequiosos, marcados pela 'investigacão do olhar' " (título do seu primeiro livro de poemas pela Massao Ohno em 1963).

    "A poesia começou quando eu sofri o processo de alfabetização", ironiza Rubens. "Meu pai gostava muito dos parnasianos e reforçava qualquer brincadeirinha que eu fizesse." Em São Paulo, o interiorano fartou-se com Drummond, Pessoa, Bandeira e Cummings. "Nessa época, Massao Ohno publicava os chamados poetas novíssimos, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés e entreguei a ele meus manuscritos de poesias. Sem que eu soubesse, a poetisa Renata Palotini recomendou a publicação e aos dezoito anos eu lançava meu primeiro livro no bar da moda, o João Sebastião Bar. Dos setecentos exemplares, meu pai comprou um montão e o restante já estava encomendado..."

    Amante de cinema sofisticado (no momento, "entusiasmado com a reabertura da Cinemateca") e de um bom disco de jazz (Miles Davis e Chick Corea), o Rubens poeta anda desconfiando de sua produção literária: "É que me sinto tão impregnado de Jorge de Lima a Augusto de Campos, que temo não ter originalidade nenhuma."

    Filósofo por profissão e poeta por diletantismo, Rubens costuma fascinar os amigos. Por duas vezes surpreendeu a ninguém menos que Michel Foucault. Quem conta o episódio é o tradutor e ensaísta Paulo César de Souza, amigo íntimo de Rubens: "Quando Foucault esteve no Brasil, na década de 60, o Rubens ofereceu-lhe um almoço. Sua cozinheira, na época, era a baiana Alexandrina, cujo vatapá arrebatou Foucault." Após repetir o prato, o autor de História da loucura, ante aquela mostra de exuberância, teria exclamado, eufórico: "Vous êtes un sibarite!" Mas a história não termina aí. Conta César que quando Rubens morou em Paris fazendo o doutoramento (num studio em Montparnasse, vizinho de Sartre), encontrou-se de novo com Foucault, que se rendeu ao intelecto desse tímido paulista. Confessou-se impressionado com o fato de Rubens transitar nos cumes da filosofia transcendental [Fichte é considerado um dos filósofos mais difíceis] e que isso "era muito alto para um filósofo popular" como ele, Foucault... Para Souza, "embora Rubens tenha a imagem de uma pessoa cerebral, perdido em elucubrações, na verdade é muito ligado aos prazeres simples da vida".

    Essa também é a imagem que a amiga Miriam Chnaiderman, psicanalista e ensaísta, tem do seu "companheiro de indagações": "Ao lado dos questionamentos mais elevados, ele busca sempre a simplicidade." Miriam faz questão de marcar a autenticidade do amigo: "Quando o Rubens deu um jantar para o Caetano Veloso, os livros ficaram esparramados, e os cinzeiros continuaram cheios. Eu perguntei se ele não iria arrumar a casa para receber o Caetano. Ele respondeu: 'E daí que é o Caetano?' 0 Rubens é assim, ele não entra no imaginário dos grandes mitos. É uma forma muito especial de se situar no mundo", conclui.

    Na verdade, Paulo César revela que Caetano é que é tiete de Rubens: "Ele tem grande admiração pelo que chama de 'estilo delicado da escrita' do Rubens." Mas quando perguntam a Rubens se só é possível filosofar em alemão, a resposta vem pronta: "Não, isso é falso. Em grego tambem dá." Ironia e humor é o que não faltam na poesia de Rubens: "- Estas plantinhas são mudas?/ - Pelo que me disseram, não./ - E o que foi que elas disseram?" ("Botânica ao pé da letra", do livro A letra descalça, Brasiliense, 1985).

    Embora Rubens seja excessivamente crítico ao falar de sua atividade docente - "sou muito chato, exijo muita leitura" - essa não é a opinião de Rogério Costa, orientando de Rubens em sua tese de mestrado sobre Filosofia Medieval: "Sem ser paternal, ele sabe muito bem propor as questões mais pertinentes ao meu momento intelectual." E revela um dado folclórico do amigo e orientador: "Ele não acorda antes do meio dia. E não é porque durma tarde. Diz ele que gosta mesmo de dormir (à la Descartes, que dormia dezesseis horas por dia...)."

    Excesso mesmo, só no sono. Produz em média seis poemas por ano (marcados pelo rigor do filósofo e a concisão do essencial) e se diz "totalmente indisciplinado com a poesia". Autor de poemas como "Niilirismo" (A letra descalça) ou "Seja breve":

    "Isso de ler e escrever
    é por amor ao estudo.
    Marx e a vida são breves!
    Pode-se querer tudo
    desde que seja leve."



    do livro Poros, Rubens tem o que Giannotti definiu como uma "certa fragilidade diante da violência do mundo".

    Mas ele a enfrenta trabalhando duro. Chamado pela Iluminuras para dirigir a coleção de filosofia Biblioteca Pólen, Rubens está animadíssimo com a idéia de levar a filosofia para fora dos muros acadêmicos: "A filosofia não se faz só dentro de recintos. Desde a Antiguidade, ela existe em forma de fragmentos, diálogos e correspondências. Vamos publicar Schiller, Diderot, Friedrich Schlegel e outros."

    Já o futuro do poeta é incerto: "Não sei dizer se vou continuar fazendo poesia. É imprevisível." Talvez fosse melhor terminar com a última estrofe do poema "Branco", que finaliza o livro A letra descalça.

    "Pingaste no papel, ponto final.
    A ponta da caneta te esqueceu.
    Sinal, deixo-te só
    retido na retina de quem leu."

    (LEIA, agosto de 1989)



    Intervalo e Enigma
    Salete de Almeida Cara

    Em Rubens Rodrigues Torres Filho, o enigma do poema permanece suspenso entre tudo o que vem antes dele e tudo o que ele é.

    A poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho assombra pela fecundidade e radicalidade líricas com que assume a história das formas poéticas e o "tempo de carência" em que se inscreve. Trabalha com a tradição, a modernidade e a falha: um poética do eco e do oco - o que, dito assim, não quer dizer rigorosamente nada, mesmo que se acrescente - "sub specie ironiae" - ou, ainda, que se matize ironia com aspas, dado que ela nada tem da profundidade que revela, mas muito do "humour" que sabe não chegar a lugar nenhum.

    Eco e oco podem remeter à correspondência entre fala e falha de uma certa tradição pós-mallarmaica. Aqui, no entanto, eco e oco remetem também a um modo de relacionar-se com a série literária (a mais distante e mais próxima no tempo) e com linguagens não-literárias, num corte que re-encena o intervalo e a passagem entre "a solidão do ovo /a ponta da presença" ("Praça", 0 vôo circunflexo, 1981): trata-se de uma experiência especial dos sentidos ou, metonimicamente, da linguagem. Um modo possível de ser poeta, hoje, de maneira surpreendentemente singular.

    A desventura e angústia são antigas. 0 caminho de Rubens Rodrigues Torres Filho, singular e instigante. "A trama - o texto - tecido /na ponta dos atros dedos /ao fio dos medos ingratos (...)" ("Mas o Cisco", 0 vôo circunflexo).

    Sorriso justo

    0 enigma do poeta, sua poesia, desenha-se à maneira do gato de Cheshire, como está exemplarmente no interrogativo Figura (Figura, 1987), um espaço intervalar e paradoxal daquilo que se mostra na cara do texto e se esconde antes da figura-texto, como aponta o dêitico que inicia o poema. "Já vi muitos gatos sem sorriso. Mas sorriso sem gato!" espantou-se a Alice de Lewis Carroll:

    "Esse sorriso justo, pontuado por vírgulas abstratas,
    e no caminho, seguramente em cena, mira
    o claro desejo: desmisturar-nos, por qual arte,
    em meio a tanto. Mexer com esses relevos
    subordinados ao fio da ausência. E o que se supõe
    dispõe flores avulsas e laços de linguagem"

    0 enigma do poema (da linguagem e do sujeito, aqui lírico), suspenso entre tudo aquilo que, supostamente, vem antes dele (ou que, nele, se transforma) e tudo aquilo que ele é (ou que, através dele, nasce), é expressão de uma carência infinita. Duplos resíduos - olhos, nós, conchas, ocos, palavras, lapsos e laços de linguagem - geram, sem inocência e de modo "degradado", o sujeito lírico, numa cena que se desenrola em constante movimento. 0 "fio de voz", "fio de ausência", desenha a mobilidade de imagens, ritmo e sonoridades (de sentidos), como se a superposição etimológica de "vago" (vagus) e "vácuo" (vacuus) - "vazio, despejado, exausto" - pudesse carregar, no movimento, "vacare corpori" ("refazer as forças"). "Antigamente eu acreditava nos direitos /de minha subjetividade soberana. /Hoje em dia não há mais direitos nem esquerdos: /um fio apenas, sem espessura, /marca o limite do mundo" ("(Duplo) Resíduo", A letra descalça, 1985).

    "Arte Poética", de 0 vôo circunflexo, fala da poesia como espaço "entre" (nem um nem outro) "a fala e o desespero", "o gume, o fio e a fala", e também como "viagem". As idéias de intervalo, suspensão, movimento e silêncio se superpõem no último poema de A letra descalça: "Este poema me mandou calar. /Intercalada voz esvaziei. /Era certeira vez uma avestruz /metida no orifício do talvez". Ou ainda, do mesmo livro: "Por onde se extravia o pensamento /e se rebusca em vãos e pelas traves, /por lá passam também aquelas rios /desocupados (passam ao contrário) /e se esvaziam, ávidos, a vácuo". Pura tautologia interpretativa, quando se sabe que Poros é o título de seu último livro, ainda não publicado. Pelos poros, por onde a poesia respira, flui o sentimento do "páthos".

    "0 reinado real. Lapsos falhos" ("Pranto Pronto", de Poros) diz, pela assonância aberta em -a, as idéias de espaço de tempo (contida em "lapso") e de fenda (que é "falha") traduzindo, numa tomada sonora em primeiro plano, os "deslizes" evidentes e perceptíveis no modo de configuração lírica. Aqui e agora, "mexer com esses relevos /subordinados ao fio da ausência."

    Ocorre a imagem de uma estrutura não-regular de elementos vazados. Ocorre a noção de intervalo como movimento para "integrar" distâncias e diferenças, assim como de um livro para outro o intervalo, que é de tempo e ângulo de enfoque, não desfaz o sistema poético equilibrado: um "close" na linguagem, diríamos de A letra descalça; uma ampliação de limites, diríamos de Figura e Poros (que teve cinco textos publicados na bela edição de Figura, com três gravuras de Carlos Clémen, produzidas em processo serigráfico).

    Fluxo verbal

    A invenção melopaica explica metaforicamente o processo, por exemplo, na interrupção do fluxo verbal com uma rima em ausência, e a suspensão de um lado do parêntese fazendo eco à do substantivo, "Clarão da Rima": "(a literal a limpa a lisa nua /que no clarão da rima continua /achando modos novos de luar". Procedimento comentado ainda mais explicitamente no poema seguinte, retomando a idéia de movimento: "Sabendo de vagar, de estrelas lisas, /de olhar pelo que falta e de intervalos (...)" ("Nos Tempos do Verbo Luar", A letra descalça). A invenção imagética, por sua vez, fala a intermitência dos sentidos, "lapsos falhos", num poema como "Matissemorfose" onde, diante de um quadro do pintor (uma das variações de "Natureza Morta com Peixes Vermelhos"), o poeta procura pela designação final, irremediavelmente mutante, entre nuances de comparações: "(...) Pois os peixes /são mais peixes do que flores /e o vinho (esplendor! ) é água". (0 vôo circunflexo).

    0 enigma proposto pelo poeta é congenial à sua função de sujeito no poema. "Nós": pronome pessoal e laços de linguagem. "Nós, achados desatados, /cada um de nós, cada nó /dá volta à letra, laçada: /e a linha corre melhor" ("Antileitor 3", A letra descalça). E assim como o sujeito, gerado na dimensão simbólica da linguagem, é linguagem, também o corpo, desenhado "a fio de faca" em suas "falhas", "perfil ou chaga", "ferida afiada", é faca ("Perfil", 0 vôo circunflexo). 0 corpo, despedaçado pela experiência e pelo não-saber (saber), desenha e expressa uma angústia sem volta e sem fundo.

    "0 olho, vidro,
    voou em cacos.
    0 que resta
    deste farol, a órbita vazia
    é certa fome irônica
    e algum câncer prolífico que a ataca."

    ("Acidente", 0 vôo circunflexo).

    É nesse livro que a imagem do olhar é identificada a "vôo circunflexo" (e o primeiro livro, de 1963, se chama Investigação do olhar). "0 vôo circunflexo de uma ave, /ponto de exclamação e convergência /de um olhar mais que nítido: vazado" ("Circunflexo"). 0 olho-palavra-concha tem seu perfil (ou "chaga") talhado, a faca, pela repetição dolorosa de ensaiar sentidos, experimentando significantes. Sua forma curva chega a lembrar a do feto enrodilhado, impelido a abrir-se "ab ovo", para o "susto de viver". Mas aqui, sem ilusões, o olhar "nítido" é também "vazado" como o de Édipo, sabidamente repetido: mesmo disponível para acolher formas e sentidos, este vôo é vacância e não alcança nenhum "céu estrelado" ("circunflexus", no entanto, é circunferência do céu). "Teu seio, o fundo de tua vagina, /regiões aprazíveis onde o musgo /pede licença para espreguiçar-se. Ali /o desejo quer fazer seu ninho, /como se algum espaço fosse côncavo, como se /estar /já não fosse ser convexo /e negar pouso a todo & qualquer cansaço" ("Que Impede o Lado de Dentro?", Poros ).

    0 que dá repouso dá também a morte, já que desejo é vida e escrever, portanto, é fatalidade inexorável: duplicação terrível, regida pelo "anankê", da experiência primeira da vida e da linguagem, quando já não há possibilidade de eliminar o "erro" (a culpa de saber?), que "nenhum /solvente /absolve". Daí esse soluço rítmico-espacial pelos cortes em versos curtos:

    "Errei. Agora
    mando meu recado
    por vias lácteas
    para outras galáxias.
    Devora o que foi,
    devora, esquecimento
    faminto.
    Devora em mim
    o erro e a mim
    com ele se nenhum
    solvente
    absolve.
    Posso nascer inteiro
    de nova mãe, inteiro
    para afogar o escrito
    de volta
    no tinteiro.
    Mata-borrão é a morte. Dá
    algum repouso, duro
    que seja. Distam tanto tempo (anos-luz!)
    as estrelas."

    ("0 Céu Estrelado", 0 vôo circunflexo).

    Por isso investigar (como fazem o poeta e o leitor de poesia) anagramaticamente, deixar e recolher vestígios, não é solucionar. "0 que é vestigio, investe e instiga /ou, se é do olhar, investiga. /Um ao outro: o olho se olha, /se se recolhe em si, se se desfolha" (epígrafe de 0 vôo circunflexo).


    Nome dos insetos

    Com três elementos - trabalho (faber), poeta (persona), texto ("sphynx"), como está em "3 Expoemas" (0 vôo circunflexo), a configuração lírica superpõe e propõe seus traços mais básicos, segundo Northrop Frye, numa exponenciação aguda e tensa: o "mélos" (sonoridade e ritmo: encantamento) e a "Apsis" (desenho verbal e imagens: enigma). Aqui se conspurca a concepção de artífice puro e se abandona qualquer ilusão oracular do poeta, vindas de uma certa linhagem da modernidade, com origens no Simbolismo. No livro de estréia, Investigação do olhar, num poema mais longo, dividido em seis partes, "Cantigas do Gato, da Corda e da Candeia", o poeta dizia: "Foram sete as empresas em que ativo /me aventurei para encontrar a claridade /e foram sete as vezes que meu corpo /redescoberto foi varado pelo frio", testemunhando os ritos de iniciação poética. Nessas cantigas o poeta ainda podia afirmar: "Agora sei o nome dos insetos /e posso revelar-te o amor mais intimo /das abelhas quando escolhem o seu mel". Mais tarde, em Poros, o que se lê é "Relance": "(...) e o que se quer, por se querer, não está mais: /por pura habilidade consumiu-se, /e nosso gesto cerca sua ausência /numa celebração que tanto a faz".

    A ambivalência de "tanto fazer" uma "ausência" incide sobre o modo de ser "moderno". Dessa forma, o espírito paródico que sustenta sua relação com a tradição nasce com um sujeito que não tem nenhuma euforia, o que é diferente da paródia modernista. É como se, aqui, se cantasse num tom menor: no intervalo, tom a tom, escorre "páthos".

    "Por obra e arte
    de quem me leia
    colho e reparto
    a lua cheia. Num almanaque
    das coisas tortas
    já recolhi
    tudo o que importa
    e nem coragem
    nem esperança
    perdem a chance
    de entrar na dança.
    Ao fim e ao cabo
    tudo é demais.
    Pouco lhe dá?
    Tanto não faz"

    ("Cantinho do leitor", Poros).

    Por que não ver que o espírito paródico ricocheteia até na obra do próprio poeta quando, por exemplo, ao lado de "Cantinho do Leitor", se lê "Antileitor"? "Adeus, leitor, me despeço /logo no primeiro verso: /mal inicio o poema /já não te quero por perto" (A letra descalça).

    0 poeta-persona, espírito corrosivo e desalentado, que caminha pela tradição e pela modernidade destilando seu veneno encontra, para epígrafe de Poros, uma frase de William Burroughs apud Laurie Anderson: "Language is a virus from outer space. Listen to my heartbeat". Mas já mostrava seu tanto de desacato (também um auto-desacato) na antiga referência ao poema, "Persona": "(...) filho da gruta esse astuto /granito que se esganiça /o extrato que a boca arranca /sem o metro que a trabalha" ("3 Expoemas", 0 vôo circunflexo).

    O que há, agora, é uma espécie de incontida impaciência, às vezes bem evidente, em textos que já nem cabem em versos (mesmo livres) e explodem até numa prosa-paródia assumidamente metafórica, como aquele que descreve "O Lamento da Literatura". "O lamento da literatura em seus gorjeios e trinados percorrendo a escala das emoções. (...) Tontas cavalgadas por pradarias absolutamente inconcebíveis - e o real se retira humilhado perante o referido inatingível esplendor. (...) Certas formas se acentuam, procuram-se para grifar-se e, ao coincidir consigo mesmas, sucumbem ao júbilo de se sentir indescritíveis. Prodígios da metamorfose imperceptível!" ("0 Lamento", Poros).

    Ótica perversa

    Essa é uma encenação, com pompas e circunstâncias, de um possível pequeno filão da "Grande Bobagem Universal", risco que Roland Barthes percebia correr sempre. Pequeno filão: o triunfo do "literário" que, jubiloso, se exibe ou se esconde, às vezes, sob insuspeitas máscaras. Num outro timbre, ecoa em outros textos do mesmo livro: "Marcar assim /o digno papel, maculá-lo /com a letra incruenta - eu diria. Estar aqui propriamente e nisto /alagar o visto. Largueza /de perspectivas amplas (...)" ("Por Escrito"), ou então: "Não sei até que ponto /a exata recuperação de uma tonalidade /(musical, emocional) deixa ilesa /aquela singeleza /na qual entretanto nosso primeiro sentir se comprazia" ("Relance")

    É dessa ótica, meio perversa, que o poema retoma e detona a tradição lírica assentada metricamente - a ingenuidade da redondilha e o decassílabo, metro de larga importância na poesia de língua portuguesa, sobretudo no Romantismo - incluindo ainda a dicção árcade e a solenidade parnasiana. Das redondilhas, que estão em O vôo circunflexo, A letra descalça, Figura e Poros, irrompem súbitos ritmos não-silábicos, acentuando a dissonância entre tema e métrica, alargando-a, com mais um intervalo dissonante entre métrica e ritmo.

    "Minha amada me diz: Mete.
    Céus! Me sinto um meteoro -
    e vou indo, feito um globo,
    feito um bobo, uma vedete,
    um luminoso sinistro"

    ("Janelas", A letra descalça).

    A redondilha "redondilha" será didática, se não fosse cética:

    "Deflorei a margarida
    tão pura do meu jardim.
    Ela, agora, sem recalques,
    é rosa de mil encantos.
    Eu sou morcego, sou negro
    profeta da perdição.
    Ela dança com as folhas
    auri-verdes do perdão.
    Eu, seu amante e carrasco,
    sou alvo de duro asco,
    cavalo preto, de casco
    cor da lua candidata
    ingrata da oposição".

    E o decassílabo - com dois versos desgarrados - aparece sob título evocador das evoluções desinibidas dos pares pelos salões, nos saraus românticos:

    "Nós nos queremos bem: ah que derrama,
    que hemorragia de sentimentos!
    Irmãos! que almas transparentes temos!
    0 chão nos foge sob os pés, tão leve.
    Podemos nos olhar pelos avessos
    que é tudo luz. 0 bem que nos queremos
    nos santifica até aos intestinos.
    Que vísceras de vidro! Que evidência!
    Meu pênis se eletriza -é um travessão! um hífen
    Um traço-de-união entre duas almas
    tão juntas, tão aninhadinhas
    uma na outra que dá gosto e enlevos"

    ("Desenvolturas", 0 vôo circunflexo).

    Ainda em tom menor, vai até cantigas e recitativos populares, recolhe cacos da publicidade, faz poemas-flashes homenageando Glória Swanson e um "Noturno da Rua Marquês de Itu" (A letra descalça). Dito assim pode parecer excesso, o que é fecundidade e radicalidade líricas, acionada pela errância da linguagem-corpo-sujeito: "(...) Se desse voz a 'isto' e seu gemido /pudesse ir achar ninho num ouvido. /A verdadeira noite é tão mais árdua /do que entreter domésticos fantasmas". Os dois últimos versos citados pertencem a "Verberações", de 0 vôo circunflexo, os dois primeiros a "Arabesco", de Figura e Poros.

    "É bem mais fácil a vida para quem dessas coisas não cogita" (Jocasta,em Édipo Rei, de Sófocles).

    (Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 1987)



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