fragmentos críticos


texto: Olgária Matos

Nosso tempo - já se disse - é aquele do qual os deuses já partiram ou ao qual ainda não chegaram. Experiência de abandono e desampara, a Modernidade se inicia com o advento do Sujeito racional soberano que conhece a natureza e suas leis, buscando por si e para si os princípios de suas certezas no mundo. Conhecer significou, a partir do século XVIII, dominar tudo o que escapa às mãos do homem - a contingência na natureza, o acaso da historia, a fortuna - temporalidade instável e adversa, no plano da ética e da política - atribuindo-lhes Constancia, regularidade e ordem pela geometrização do espaço. Emblema fundador desse universo são a esfera, a régua e o compasso. À ciência "contemplativa" seguiu-se "vita activa", metaforizada pelos artefatos que sustentam a construção de um mundo certo em meio à temporalidade incerta. O homem fez-se seu engenheiro, senhor da Natureza e sua própria natureza, ele mesmo "um império dentro de um império".

Na síntese de um universo auto-confiante e regido pelo principio da razão suficiente, encontra-se a geometria - personagem central das telas de Cláudio Tozzi. Linhas ortogonais, degraus e escadas, torres e faróis estão, não obstante, desvestidos da função de orientar o homem, não lhe indicam a boa direção. Geometria, aqui, ano é a do espaço, pois Tozzi trabalha preferencialmente com o tempo. Ou antes: na tensão entre espaço e tempo, Céu e Terra, tudo vacila num limiar. Instante de hesitação, os quadros não nos sugerem habita-los, um passo permanece em suspenso, indeciso quanto a seus resultados.

Cláudio reflete o tempo, partindo das cidades. Se Alphaville de Godard, Blade Runner de Ridley Scoth, O Mundo desde o Fim de Paul Auster apresentam-nas tão pouco confortáveis é por não serem tocadas por qualquer passado. Cláudio Tozzi, ao contrario, faz pensar no espaço aporético de Zenão de Eléia: Aquiles, a passos largos não ultrapassa a tartaruga, permanecendo imóvel: a flecha veloz, paralisada em cada instante de sua trajetória - é flecha que não voa. Espaço e tempo, no enigma da divisão ao infinito, fixam o mundo no primeiro dia da criação.

Os trabalhos de Cláudio Tozzi nos convidam a interrogar a condição do homem moderno, indicando sua migração metafísica, por degraus não-cartesianos. Obra inaugural da modernidade, o Discurso do Método. Com a metáfora da escada, Descartes constrói as primeiras regras para desenvolver o conhecimento: "começar sempre pelas coisas mais simples e fáceis de conhecer para, aos poucos, elevar-se, como que por degraus, ao conhecimento das mais complexas". Sem recurso e regras tranqüilizadoras, o universo criado por Cláudio é mais um discurso que um curso; é um anti-método uma vez que, diversamente da linha reta da geometria cartesiana, os quadros apontam mas antes deriva e desvios. Por isto, em certas telas, vemos as voltas de parafusos metamorfozeando-se em degraus, degraus em torres ou faróis, em total desequilíbrio. Anti-método transita para anti-heróis. Nos quadros, a multidão é tão homogenia quanto cinzenta, com rostos e vidas "insignificantes". Existências anônimas, nos diz Foucault, elas "só se manifestam tropeçando com o poder, debatendo-se com ele, trocando 'palavras breves e estridentes', antes de regressarem à noite (...).Infâmia de homens simples e obscuros que devem apenas a queixas, a relatórios policiais serem trazidos à luz por um instante".

Em Tozzi, a natureza artificializou-se e o artifício naturalizou-se graças às astúcias do homo faber. Seres avulsos confundem-se com o cenário, ambos transfigurados em fantasmagorias. Cláudio está tratando da cena urbana; nela nada é signo de autoctonia ou pertencimento, e a existência é um labirinto. O de Creta, construído por Dédalo, é traçado com medida rigorosa, controle e precisão. Ao pensa-lo com o Minotauro, o arquiteto privilegiou a figura abstrata de um espaço móvel, percurso sem erro e sem divagações; através de movimentos alternativos da direita para esquerda se expressa a idéia do labirinto ao revés, quando já se desfaz e desvanece com a morte do Minotauro. O labirinto de Cláudio é histórico, não pré-existe aquele que vai decifrar o percurso. Agora é o homem que, errante e sem eternidade garantida, constrói um labirinto. Paisagens e personagens parecem intransitivas quando o tempo figurado é o da simultaneidade e não o da sucessão. Há nas telas a presença de uma época em outra, citação de trabalhos de 1968 em 98, como se o artista procurasse, a contrapelo, recusar a dispersão temporal. Modernidade é aqui entendida como experiência atual, existência: indeterminação radical do presente, este não conta mais com a crença na transcendência mítica ou teológica e a obra da conciliação do sentido do mundo é de inteira responsabilidade do homem.

As "paisagens" de Cláudio constituem rememorações às quais o artista se refere com a palavra alemã Eingedenken. Diferenciando-se da reminiscência platônica - anamnese na qual conhecer é reconhecer, a recordação é rememoração ativa e criadora. É manutenção no presente da totalidade do passado e possibilidade de reabrir o tempo histórico. Insólitos e inquietantes, os quadros de Cláudio Tozzi não manifestam uma racionalidade geométrica mas espírito de geômetra. Da "realidade sem mistérios" engendrada pela Ciência despoetizadora, Tozzi retorna o "mistério do Mundo", porque sua geometria traz consigo vestígios do invisível.

Olgária Matos