Tunick na escada

O título deste artigo poderia ser também Os Nus de Tunick ou Nus na Madrugada dois. Por que dois? Porque em 8 de julho do ano passado escrevi Nus na Madrugada. Sobre a foto de nus que Tunick fez em Friburgo na Suíça.

Naquela ocasião minha referência foi uma notícia e uma foto. Hoje, 27 de abril, fui verificar no Ibirapuera como o fotógrafo norte-americano Spencer Tunick , de New York, faz suas fotos com centenas, milhares de pessoas nuas.

Desde que escrevi sobre a foto de Friburgo fiquei curioso. Sabia que Tunick fotografa quando amanhece. Foi assim em todos os lugares. A convocação nos jornais informava que com frio ou calor, sol ou chuva os interessados deveriam estar no Parque do Ibirapuera , entrada pelo portão 2, às 5 da madrugada.

Um kiwi, uma banana , uma ameixa e um suco de laranja foram meu café. As 4 um táxi me pegou. No céu lua-cheia iluminava a noite. Quente. Gostosa. Parque D. Pedro, Anhagabau, buraco do Ademar/Maluf, 23 de Maio. Tudo livre.

Às 4,20 estávamos em frente do portão 2. Grupos barulhentos esperavam . O portão seria aberto as 4,30. Seguimos para o portão 3. Dispensei o táxi e esperei. Enquanto esperava observei a barraca da frente . Vi também duas prostitutas e dois rapazes rindo muito e dançando.

Um carro parou perto de mim e um rapaz de no máximo dezoito anos perguntou: "o velhão, tem aí uma camisinha pra me emprestar ?" Disse que não. Tinha duas. Sei lá se era camisinha mesmo que ele queria. O guarda do portão perguntou se ia participar da foto. Achei engraçado. Ri. Disse que não. Sou da imprensa.

Britanicamente as 4,30 o portão foi aberto. Fui direto à portaria. Não havia ninguém. A Bienal só abriria às 9 horas. Funcionários de plantão próximos à portaria me informaram que o pessoal da imprensa da Bienal estava lá pras bandas do portão 2.

A foto do Spencer seria feita perto da Oca. Fui em frente. Há muito não andava a essa hora da madrugada. Sentia o molhado do orvalho na grama através do tênis. Respirava o ar puro com prazer. À medida que me aproximei da Oca risadas e gargalhadas se faziam ouvir.

Carros, motos e uma do tipo Easy Rider, aquela do Denis Hopper em "Sem destino" entravam e estacionavam. O clima era de festa. Há os que vieram para participar da foto, os que vieram para ver, a trabalho, entre eles, eu, e os que vieram para se exibir. Uma ruiva tingida, super maquiada, toda de preto, com capa preta, em cima de saltos altíssimos, vira notícia. É fotografada, filmada, entrevistada.

Outra, tipo modelo, loira alta, fausse maigre, coxas à mostra , veste um modelito entre o vermelho e o rosa e trás na cabeça um quepe da mesma cor. O short justo torneia bem as pernas e o bumbum. Também se transforma em foco de atenção. Travestis? Talvez...

Se uma girafa chegasse naquela hora em que nada acontecia de verdade, também seria entrevistada, fotografada e filmada.

Em frente à Oca sob a luz de um poste o pessoal da imprensa da Bienal organiza-se para credenciar jornalistas,fotógrafos, cameramen. Alguns fotógrafos carregam alem do costumeiro equipamento escadas de vários tamanhos e materiais.

Recebo minha credencial adesiva autocolante, verde musgo claro. Em destaque em preto, Imprensa. Em letras menores, Performance Spencer Tunick 27 de abril 2002.

Somos informados que Tunick fará três fotos. Uma atrás do Museu de Arte Moderna, no estacionamento, outra entre o MAM e a Oca, sob a marquise e a terceira na grama perto de uma escultura antes do portão 2.

A informação revela um novo dado para mim. Não se trata de uma visão única mas de várias . Não sei se nas outras performances isso aconteceu. É novo. O jornalista da Bienal pede aos fotógrafos e aos cameramen para não focalizar genitálias em close. Risadas e piadas .

As 5 da madrugada o número de participantes é grande. Há mais homens do que mulheres. A proporção é de mais de dez homens para uma mulher. Seguranças fazem uma barreira sob a marquise. A massa humana se esparrama a partir dela. Participantes continuam a chegar sem interrupção.O policiamento é pesado. A equipe de produção, todos de camisa azul, através de megafones informa que os participantes precisam assinar uma autorização. Sem a autorização não há participação. O número de participantes cresce. Calculo mais de mil. Aqui e ali uma mulher. Só ou acompanhada. Casais, alguns. Sempre jovens. De mãos dadas.

Ansiosa, nervosa, excitada a massa reage rindo, gritando, movimentando-se, fazendo graça. Fico sabendo que a primeira foto esta marcada para as 6,25. Ao amanhecer, ao clarear, o primeiro clic de Tunick será disparado.

A barreira se abre. A produção dirige os participantes para o espaço atrás do MAM. Pede que se sentem no chão para ouvir as instruções. Imprensa e público se espalham junto ao gradil que os deixa a 20, 30 metros dos que vão se despir.

A piada do dia é um jornalista que se infiltrou entre os futuros nus e que se despe e quer entrevistar Tunick.

Dois guarda o trazem para nosso lado. Ó rapaz está desempregado. Foi seu jeito de chamar a atenção. De protestar. Cria um pequeno tumulto. Com suas "vergonhas" à mostra corre de lá para cá, de cá para lá. Conseguiu seus quinze minutos de fama.

Entre as 6 e 6,25 a lua desapareceu por trás dos eucaliptos do parque na direção oeste na Vila Nova Conceição. Amanheceu. Tunick, de camisa preta, calça caqui, em cima de uma escada de uns cinco ou seis metros de altura dirigi-se aos participantes. Explica que o que estão fazendo é arte. Lembra ao público que os participantes merecem respeito. Depois explica como é que cada um deve se portar: "Não quero ninguém de pulseiras, relógios, brincos, óculos, chapéu, meias ou perucas". Risada geral.

Em seguida pediu que todos tirassem a roupa. Assim que a tradutora fez o pedido, cada participante despiu-se colocando as veste e pertences à frente. Eram 6,48. O silencio era total. Em pé, nus, mais de mil pessoas se entregavam aos nosso olhares cúpidos, críticos, desdenhosos, invejosos, respeitosos, maldosos e sabe-se lá quantos outros adjetivos mais. E claro aos de Tunick. Ao de sua câmera ou câmeras, duas Pentax.

O ruído irritante do rotor do helicóptero da Globo interrompe e atrasa a primeira foto. Ao meu lado um rapaz xinga: "Vênus prateada o caralho. Vênus de merda." À minha frente a reporte do Jornal Hoje , o cameraman e o caboman se mancam. Finalmente o helicóptero desaparece. Tunick volta a falar: "Não fumem, (risadas) não abram as pernas, não levantem os braços. Por favor esqueçam as posições estranhas da ioga."

Obedecendo às instruções os nus dirigiram-se para o local da foto atrás do MAM , próximo à Bienal. Ali permaneceram e foram fotografados deitados seguindo as instruções de Tunick de cima de um improvisado palanque em uma empilhadeira , talvez há dez, doze metros de altura.

Com pequenas variáveis as outras fotos foram feitas . Deitados no cimento da marquise ou na grama do jardim os nus se fundem como um todo. Perdem a individualidade. Deixam de ser homens, mulheres e passam a ser gênero humano. Massa anônima que se dilue no aglomerado dos corpos despersonalizados. Agora são 17 horas e 20 minutos. Há doze horas não tinha vivido a experiência que vivi . A performance de Tunick , considerado pela polícia de New York personna non grata, por causa de seus nus na rua, me fez pensar no ser humano e no que se transformou. Vi mais de mil pessoas se despirem, andarem nuas fazendo as fotos por mais de duas horas, Tudo correu bem. Às 8 da manhã cada um tomou seu caminho. Não fui à entrevista coletiva que Spencer Tunick deu depois das fotos. Não tinha nada a perguntar. As performances me bastaram. Enriqueceram.


Carlos von Schmidt
São Paulo 27 de abril de 2002