Sophie Calle ou surpresa das surpresas




Já tinha ouvido falar de Sophie Calle, de suas ações e instalações. Mas, não tinha lido nada do que escreveu.

Notícias e artigos no Le Monde e no Le Figaro falavam de sua exposição no Centre Pompidou, Beaubourg.

Diziam que Sophie Calle, “cette artiste conceptuel” podia ser vista na exposição “M’as - tu vue”, título que revela o espírito da mostra. A alusão à brincadeira do jogo da cabra cega, do esconde–esconde, é clara, óbvia.

No Le Monde falou-se mais da artista e de sua vida, aventuras e ações fora do comum. Pouco se falou da exposição. No Le Figaro desfolharam a margarida. Com ácida ironia sua exposição foi reduzida a pó de traque.



Deixou-se claro que ser filha de um importante colecionador francês de arte contemporânea ajudou-a receber 1000 metros quadrados de área, no 6º andar do Beaubourg, espaço considerado nobre e destinado somente aos grandes nomes.

Curioso, procurei saber mais sobre essa mulher, hoje com 50 anos, e que aos seis costumava despir-se no elevador para então, nua, andar pelo corredor em direção à porta do apartamento.

Suas histórias são especiais, sui generis.

Em 79 Sophie convidou amigos, conhecidos e desconhecidos a dormir, um de cada vez, 8 horas em sua cama.

Enquanto dormiam, fotografava. Fez 176 fotos. Em preto e branco. Deu ao conjunto de fotos o nome de Dormeurs, Dorminhocos. Escreveu-se que a qualidade das fotos deixava muito a desejar. O que não se escreveu foi que em 1963, Andy Warhol filmou durante várias noites um seu amante dormindo. Do material filmado resultou Sleep. Um filme underground, uma longa metragem verdadeiramente longa: oito horas. Um clássico. Cult.



Nos anos 80 Sophie mandou sua cama para um leitor que sugeriu que ambos sufocassem suas dores de amor entre os lençóis dela.

Ano passado, à noite, no alto da Torre Eiffel, em uma grande cama de casal, Sophie deitou-se e pediu ao presentes que lhes contassem em cinco minutos uma história que a impedisse de dormir.

As histórias são muitas. Inusitadas, sempre. Contá-las é privar o leitor de conhecê-las diretamente. Não contarei.



Terminada a leitura dos artigos, sem perda de tempo passei um e-mail para Sonia Prieto em Paris. Pedi-lhe que na sua vinda a São Paulo, me fizesse à gentileza de trazer um livro de Sophie.

Tinha lido comentário sobre Douler exquise. Ontem, terça-feira, 25, Sonia entregou-me o livro.

Há muito não via um livro tão bonito. Refiro-me a beleza física do livro. Capa dura, lombada das páginas em vermelho, letras da capa em vermelho brilhante sobre pergaminho cinza, formato 19,5 x 10,5, incomum. Gravado em baixo relevo, no meio da capa, a imagem de um telefone.



O telefone é elemento fundamental para o desenvolvimento da ação.

Douler exquise é uma espécie de diário, composto por fotos tiradas por Calle na viagem através da Rússia, da China, de trem. Fotos tiradas no Japão. Não se trata de fotos de turista. Longe disso. São 92 fotos que correspondem a 92 dias.

Por que Douler exquise? Na primeira página do livro a resposta: Douler exquise: dor viva e claramente localizada. O adjetivo exquise aqui não significa requintada, delicada, deliciosa. Assume outro valor. É dor que, perdoem o pleonasmo, doi.



A viagem ao Japão foi a outubro de 1984. Quando partiu Sophia deixou um companheiro. Ao voltar em janeiro de 85 não o tinha mais. Ele tinha outra. A dor da perda é o leit motif de Douler exquise. O livro é uma espécie de expiação, de catarse. Um réquiem doloroso.

Para Calle a viagem foi a responsável pelo fim do amor. Provavelmente se tivesse ficado em Paris a relação também não teria sobrevivido. O livro termina com 99 depoimentos de pessoas a quem Sophie Calle perguntou: “Quando foi que você sofreu mais?”.

Ao contrário das páginas da viagem em que o vermelho as emolduram, as dos depoimentos e fotos estão marcadas por tarjas pretas.Luto.

Douleur exquise não é um livro de texto. Os depoimentos são despidos de qualquer pretensa literária. É um livro de imagens. Essencialmente visual. Graficamente idealizado e realizado. Como objeto, livro, perfeito.

Douler exquise foi publicado na França, pelo Atelier graphique Actes Sud em setembro de 2003. 281 páginas, 28 Euros.



Carlos von Schmidt
São Paulo, 28 de novembro de 2003 16h40