Tesouros da China
site da exposição


De Lula a Mao ou vice-versa

Fiquem sossegados. Não se trata de uma análise dialética da política do PT e do PC, nem do Kuomitang chinês. Embora esteja em moda leitura da obra de arte através do pensamento de Marx, não incorrerei nesse erro. Deixo isso para os curadores da documenta 11 e de seus imitadores bienalescos.

Não é novidade que a descrição, por mais fiel que seja, de uma obra de arte, fica sempre a dever ao original. O mesmo raciocínio aplica-se às exposições.

Quando se trata de uma exposição da magnitude de Tesouros da China, tentar descrevê-la é incorrer em débito. Achei graça em artigo que li na Folha que visitá-la não demanda tempo. Lembrei de Maria Rodrigues Alves que dizia que às vezes só há um jeito de visitar certas exposições: ir, “saluer, sourire et sortir”, “cumprimentar, sorrir e sair”. Não é o caso de Tesouros da China.

Ver a mostra às pressas é perda de tempo. Não dá. São três módulos: A Arte Imperial, A Arte do Cotidiano, A Arte Contemporânea. Juntos apresentam cerca de 2000 itens.

Ambientada em cenário que lembra salas e salões palacianos, a exposição apresenta cerâmicas dos oleiros do neolítico às fotos de Rong Rong, artista performático contemporâneo, que se besunta com mel e salmoura, expondo-se durante horas a moscas e outros insetos em uma latrina fétida e quente. Depois das horríveis e nauseantes mutilações cirúrgicas do alemão Schawzkloger, há décadas, fezes, mau cheiro, mosca, calor, diz pouco.

Descobrir nas terracotas chinesas moldadas há mais de 2000 anos antes de Cristo semelhanças de formato e de desenhos com os dos índios Javaés e Carajás foi uma surpresa e tanto. O mesmo não diria das performances do jovem chinês com suas moscas ou exibindo sua ambígua figura na Muralha da China.

Vi a exposição depois de votar na FAAP como faço há anos. Votar em um ex-operário, em um ex-torneiro, para presidente da República, em um ex-guerrilheiro para governador, teve significados múltiplos para mim. No mínimo surreal!

Foi estranho deixar a urna eletrônica e entrar na sala dedicada a Mao Tse Tung e à revolução. Impossível não pensar na repressão política e cultural. Enquanto durou a Revolução Cultural, de 1966 a 1976, só existiu a arte que o Partido Comunista quis, decidiu e aprovou .

A sala de Mao com toda parafernália propagandista, dos grandiosos comícios, dos discursos intermináveis, dos cartazes gigantescos, das cartilhas escolares, dos brinquedos infantis, revela e mostra que a lavagem cerebral e o culto a Mao realizados na China deixam o da Alemanha a Hitler e da Rússia a Stalin, no chinelo.

Bernardo Bertolucci em O Último Imperador mostrou cenas em que a humilhação, a violência, a delação, a ignorância , a destruição de obras de arte, a massificação das ideais revelam o que foram esses dez anos terríveis. A presença de Mao nesta sala é esmagadora. Assusta.

À entrada do módulo A Arte Imperial, a sala de Mao choca pelo contraste que estabelece entre linguagens e épocas diametralmente opostas. Intencional ou não o efeito causado não poderia ser maior e melhor.

Se considerarmos a arte milenar da China, para muitos, coisa de museu, de colecionador, definida, imutável, completa em si mesma, a arte exposta no módulo Arte Contemporânea é um “bebê”. Engatinhando. Aprendendo a andar.

Ignorada por milhões de chineses, faz parte de um universo restrito, limitado, diferenciado. É essa arte banida e proibida na China de Mao e pós Mao que me interessa. Em 1989, curador internacional da 20ª Bienal Internacional de São Paulo, solicitei à China, arte contemporânea. Ignorando as sugestões de nomes de artistas o que a China enviou não passava de arte aplicada de duvidosa qualidade. Inexpressiva.

Felizmente em Tesouros da China isso não acontece. O “bebê” chinês surpreende pela precocidade, agilidade e dinâmica.. Aqui, a técnica milenar de gravar é retomada por Fang Lijun, 48. Suas xilogravuras gigantescas, 488x730 cm, estabelecem com o vídeo de Son Dong, 35, estranho e inusitado diálogo.

As duas linguagens ao lado de outras como fotografia, pintura, escultura, revelam que nestes 20 anos passados o artista contemporâneo chinês, apesar de todas as limitações políticas e culturais , não parou de criar. Sobretudo de rebelar-se.

Novíssima, a arte contemporânea da China e praticamente sua vanguarda, encontra-se nesta exposição. E Mao, como não poderia deixar de ser, está presente na obra de 8 dos 35 artistas presentes.

Legacy mantle, escultura em fibra de vidro reproduz uma túnica cinza, lançada em 1911 por Sun Yatsen e que usada por Mao e por milhões de chineses transformou-se no uniforme da revolução. A obra criada por Sui Jianguo, 46, provavelmente inspirado nas gigantescas esculturas de papel maché, das festas populares, não poderia faltar nesta mostra. É referencial.

Fang Zhenjie, 37, com seu Pop Mao, de 2000, pintura a óleo sobre tela, sutil, deixa claro que uma imagem vale mais do que milhares de palavras. Sua pintura clara, brilhante, sem ranços, tem muito a ver com a dos artistas que trabalham com aerógrafos, com a acrílica, com a publicidade, um jeito moderno de ser.

Não posso encerrar sem escrever sobre o trabalho de Qiu Zhijie, 32, Tatoo 2. Em um país em que a liberdade de expressão foi reduzida a zero, seu auto-retrato fotográfico sobreposto por uma pintura de um ideograma e cujo significado é “Não, você não deve” , assume significados de grandes proporções.

De modo geral a arte contemporânea da China revela que algo mudou, está mudando. Tesouros da China não estaria aqui se não fosse assim. Esperemos pelas próximas.



Carlos von Schmidt
12/10/2002