Era uma vez um gorila branco


Copito di Nieve 26 de maio de 1997

Em 1965 fui a Barcelona. Pela primeira vez. Para ver Gaudi. Antes passei por Madri, para ver Goya. No Prado.

Depois, voltei várias vezes. Gosto de Barcelona. Se tivesse que nascer na Europa, gostaria de ser catalão, de Barcelona. Falo castelhano, mas falar catalão seria um luxo.

Ouvir o pessoal do mercado Boqueria falando catalão enquanto escolhia jamon , queijo, azeite, azeitonas e vinho foi como ouvir de Falla em O Chapéu de Três Bicos.

Nos hotéis em que fico, sempre me tomam por aposentado em férias fazendo turismo. Aconselham-me ir ao zoológico.”Vá ver Copito de Nieve, único gorila branco do mundo.

Copito de Nieve em castelhano quer dizer Floquinho de Neve. Em catalão é Floquet de neu. Significa o mesmo.


O câncer é mais rápido que Copito

Em todas minhas idas a Barcelona, não vi Copito de Nieve. Picasso, Miró, Dali, Gaudi, foram minhas prioridades. A última vez que estive lá foi em 1993. Congresso, seminário, exposições, Fundação Miró ocuparam todo meu tempo. Não vi Copito.

Agora, ninguém mais vai me falar de Copito. Morreu. Media 1metro e 63 centímetros e pesava 181 quilos. .

Viveu no zôo de Barcelona desde 1966. Ano em que foi capturado na África Equatorial na Guiné quando era um bebê. Tinha de dois a três anos. Para prendê-lo um caçador dos Fang, recuso-me a escrever seu nome, matou o pai, a mãe e os irmãos.

Copito estava agarrado à mãe morta quando o pegaram. Era um gorila pequeno. Ao nascer media 54 centímetros e pesava 8 quilos e 750 gramas.


A doença de Copito comoveu a cidade

Os Fang viviam e vivem na província de NKO próxima do rio Numi na antiga Guiné Espanhola, hoje Guiné Equatorial .

Em língua Fang o nome de Copito era Nfumu-Ngui . Quer dizer, Gorila Branco. O caçador que o capturou vendeu-o para um cientista espanhol, Jordi Sabater Pi ligado ao zôo de Barcelona vivendo entre os Fang e profundo conhecedor de primatas. . Foi ele quem levou Copito para a capital da Catalunha.

Em setembro, quando foi dada a notícia de que Copito tinha poucos meses, uma multidão dirigiu-se ao zôo para despedir-se dele. Crianças, escolares aos montes.

A entrada era franca. Pediu-se apenas que cada menino, menina, levasse um desenho de Copito. Levaram. Milhares.

A doença castigou-o muito. Vivia triste, ensimesmado, deprimido. Melhorava um pouco com antidepressivo.

Durante dias, semanas, meses, filas enormes passaram em frente da casa-jaula em que Copito morava.

Na manhã de 24 de novembro, às 6,40, Copito foi sacrificado. O sofrimento causado pelo câncer de pele desde 2001, terminou.

Submetê-lo a novas cirurgias, mantê-lo vivo artificialmente seria uma crueldade.

Ao morrer estava com 39 anos. Equivalentes a 78 anos da raça humana.


Vivendo os últimos dias

Ao receber a notícia do L Monde, Le gorille albinos du zoo de Barcelone vit ses derniers jours, O gorila albino do zôo de Barcelona vive seus últimos dias, ao ver sua foto, seu jeito triste, deprimido, dolorido, fiquei chateado, triste.

Pensei no gorila arrancado da floresta. Na selva que não que não chegou a conhecer. No espaço em que ficou preso 37 anos. Na condição de gorila diferenciado pela sua albinice.

Imagens de Instinct, Instinto, filme de 1999 em que Anthony Hopkins interpreta um antropólogo, preso em um manicômio judiciário por ter matado caçadores de gorilas e guardas florestais, vieram-me à mente.

A imagem do antropólogo assumindo a postura, o jeito simiesco dos gorilas, aproximando-se até o momento em que à noite consegue ficar ao lado de um gigantesco gorila e os dois se comunicam tocando os dedos, é inesquecível.


Copito terminal. Sem chance.

Lembrei-me também de um texto de Ítalo Calvino O gorila Albino em Palomar. Nesse livro Calvino faz o senhor Palomar relatar a visita que fez ao zôo para ver Copito

No zôo de Barcelona existe o único exemplar de símio albino que se conhece no mundo, um gorila da África equatorial. O senhor Palomar se destaca das pessoas que se apinham em seu pavilhão. Por trás da parede de vidro, Copito de Nieve (Floco de Neve, assim o chamam) é uma montanha de carne e pêlo branco.

Sentado e encostado numa parede está tomando sol. A máscara facial é de um róseo humano, sulcada de rugas: até mesmo o peito mostra uma pele glabra e rósea, como a dos homens da raça branca.

Aquele rosto de traços enormes, de gigante triste, às vezes se volta para a multidão dos visitantes além do vidro, a menos de um metro dele; um lento olhar prenhe de desolação, de paciência e enfado, um olhar que exprime toda a resignação de ser o que é, único exemplar no mundo de uma forma não escolhida, não amada, toda a fadiga de carregar sua própria singularidade, toda a aflição de ocupar o espaço e o tempo com a própria presença tão embaraçante e tão vistosa.


Copito na semana que antecedeu a eutanásia

A parede de vidro dá para um recinto circundado de muros que assume o aspecto de um pátio de prisão, mas que na realidade representa o jardim da casa-jaula do gorila, de cujo solo se ergue uma pequena arvore sem folhas e uma escada de ferro de salão de ginástica. Para além do pequeno pátio está a fêmea, um grande gorila negro com a cria igualmente negra no braço: a brancura do pêlo não se herda: Copito de Nieve continua a ser o único albino entre todos os gorila.



Das últimas imagens de Copito

A descrição do senhor Palomar não termina aqui. Calvino o faz filosofar sobre o significado do pneu que sempre que podia Copito abraçava.

Que será esse objeto para ele? Um brinquedo? Um fetiche? Um talismã?.

Talvez tudo isso, ou nada disso, ou quem sabe, muito mais. De Copito ficaram o pneu e 21 filhos. Sobreviveram seis. Urko, Machinda, Ntao, Kena, Bindung e Viruna. Todos negros. Como observou o senhor Palomar,o albinismo não se herda. Urko morreu em agosto depois de uma operação de apendicite.

Na foto do Le Monde Copito me olha com seu olhar triste, resignado, mortiço.

Pena não conhecê-lo. Na próxima viagem a Barcelona visitarei a casa-jaula em que viveu. Irei ver sua família. Será meu jeito de pedir desculpa. Prometo.



Copito di Nieve 1 de novembro de 1996

Carlos von Schmidt
São Paulo 4 de dezembro de 2003 Oh10’