De bikinis e parafusos

No início de abril a galeria Ricardo Camargo, sem muito barulho, alarde, apresentou exposição de Cláudio Tozzi. Reuniu 22 pinturas e 3 objetos, de 1963 a 2002. Fez o que o Museu de arte Moderna, o Museu de Arte Contemporânea , deveriam ter feito.

Mostras como essa permitem ver o percurso de um artista durante quase 40 anos. Na História da Arte, não importa se do Brasil ou dos Estados Unidos, isso é importante, conta.

Além de permitir uma leitura delimitada pelo tempo, pelo espaço, possibilita também questionar o artista quanto a seu posicionamento . Hoje, ver a imagem de Che Guevara estampada no bumbum da calipígia Gisele Bündchen revela apenas a ousadia do estilista que bolou o bikini. Não tem outras implicações. Nem conseqüências. Significa e mostra a alienação que envolve o mundo fashion. Em 67 quando Tozzi pintou a imagem de Che, a coisa era outra. Sabia que poderia ser preso. O gesto conotava rebeldia, engajamento político, estar à esquerda, oposição.

A pintura de Che veio três anos depois de Guerra e Paz. Nessa pintura em forma de disco, rede metálica cobre toda a superfície da área pintada. A guerra era a do Vietnã. Nessa pintura o engajamento assumido com Che já se insinuava.

Ao alinhar-se à esquerda ,Tozzi, guardadas as devidas proporções, repetiu o gesto de Visconti na Itália. Boa vida, mulheres lindas, dinheiro, carros de marcas famosas e caras na garagem não impediram-no de ver o óbvio.

Estudante sendo preso, de 1968, pintado depois da execução de Che na Bolívia, mostra um jovem cercado por três policiais protegendo com o braço a cabeça e o pescoço. Grandes áreas de branco e preto estabelecem a violência da situação.

Se aqui a repressão caminhava a passos largos em Paris, investia com a força dos brucutus e carros de assalto contra os estudantes. Ignorando as grafites nas paredes da Sorbonne: “É proibido proibir”, proibia, batia, prendia.

De Gaulle era o presidente. André Malraux , que lutara ao lado dos comunistas na China, nos anos 20 e com os espanhóis contra Franco nos anos 30, líder da resistência francesa nos anos 40, era Ministro da Educação. Mandou limpar as ruas. Remover as barricadas. Prender. O pau comeu.

Um ano depois na terceira semana de julho, Neil Armstrong chegou a Lua. Tozzi não permaneceu insensível ao fato extraordinário. As grandes massas de preto e branco que antes denunciavam a violência política repressiva nas ruas ganharam ao lado de vermelhos, amarelos, azuis, novas funções. Relatar a odisséia dos astronautas. Destacada muitas vezes através de close ups de luva, de capacete, ou de naves espaciais.

A velocidade com que a pintura de Tozzi caminhou foi surpreendente . Em 73 não há o menor resquício da pintura engajada de 68. É visível a preocupação do artista com novos materiais. Terra, areia, fibra de algodão, zíper, serpentina, passam a fazer parte da composição, integrando-a não apenas como matéria, mas como parte do contexto ideológico da pintura. Essa liberdade vai permitir-lhe em 76, como bom antropófago que é. apropriar-se de imagens já existentes e consagradas como a do rótulo do queijo francês, La vache qui rie.

Na época o fato criou celeuma, polêmica. Foi denunciado como plágio. O Jornal da Tarde trouxe matéria em que o articulista fez questão de publicar o rotulo do queijo ao lado da imagem de Tozzi para demonstrar a semelhança. Ignorando por completo que Wharol, Lichtenstein, há anos apropriavam-se do que lhes interessava sem dar a mínima para ninguém. Hoje se apropriar de imagens alheias é fato corriqueiro, comum. A antropofagia passou a fazer parte do universo da arte. Houve até uma bienal que tratou do assunto

.Depois da vaca muita água rolou. Quem vê hoje a pintura de Tozzi, percebe que o artista cada vez mais se distanciou da figura como pretexto para a obra. Face à sua pintura atual é difícil pensar em Che, astronauta, futebol, papagaios, araras, zebras. É como se Tozzi tivesse decidido não se emocionar mais. Esvaziado as imagens de seus significados. O que não acredito.

Se assim fosse não teria feito Colheita, datada de 2000, em que um recorte de parafuso em madeira tem como base uma espécie de bandeja em que centenas de parafusos de aço, parafusos de verdade , dialogam com o parafuso de mentira, pintado. Sabemos que tudo é simulacro. Mas a partir da relação, verdade e mentira é que deve começar a leitura. Dialética pura. O que me faz pensar que talvez o Che no bikini, no bumbum de Gisele signifique mais do que um gesto sem importância. Com certeza a intenção do estilista não foi reduzir o símbolo da revolução cubana anticapitalista a um bikini em uma passarela que exalta o mais desvairado capitalismo. Chocar, provocar, está mais próximo do objetivo.

Entre o Che de Tozzi e o de Gisele 35 anos se passaram. Vendo o parafuso de hoje me pergunto, pergunto a Tozzi: até que ponto o não envolvimento com o dia-a-dia, o distanciamento, a sintetização formal não levará a uma aridez insuportável...? Afinal o terrorismo está aí, o Afeganistão, Israel, Palestina, Iraque, África. Os Estados Unidos também estão. Os tempos são outros mas o homem é o mesmo.


Carlos von Schmidt
03/08/2002